A 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo encarou um desafio hercúleo de organização: no ano com orçamento reduzido, o evento foi realizado em formato híbrido, ou seja, com sessões presenciais e online. Isso implicou na estrutura paralela de sessões em dois formatos, com vendas de ingressos para exibições distintas. Houve problemas, como poderia se esperar. Alguns foram previsíveis: reclamações do público fora de São Paulo ao descobrir que os filmes mais premiados teriam apenas sessões presenciais, problemas na reserva virtual de ingressos e no pagamento, além de atrasos e falhas nas projeções. Outros surpreenderam, como foi o caso das legendas dessincronizadas na Mostra Play, e da tradução falha das legendas em geral, que prejudicou bastante filmes como As Bruxas do Oriente e Ahed’s Knee.
No entanto, resta constatar que, com todos os percalços, o resultado funcionou bem dentro da proposta. Alguns festivais foram cancelados no último ano, outros permaneceram somente em formato virtual, ou arriscaram versões menores, para constar. Mas raríssimos eventos deste porte, com 265 filmes do mundo inteiro se arriscariam numa proposta tão difícil de viabilizar. O público em São Paulo pôde assistir às sessões gratuitas no vão do Masp, no Itaú Play e no Sesc Digital, enquanto as sessões nos cinemas lotaram, dentro dos protocolos de segurança permitidos. Alguns exibidores se recusaram a pensar na segurança do público, e foram descartados do circuito da Mostra, de maneira discreta e elegante. Todos os filmes ganharam seu espaço.

Murina

É possível tirar algumas conclusões da edição 2021. Em primeiro lugar, o público, os produtores e realizadores estavam ansiosos para retornar à sala escura, com boa qualidade de som e imagem. Por isso, cerca de metade das obras não autorizou a exibição virtual: tendo a possibilidade de chegar ao público ao vivo, em oposição ao ano passado, por que autorizariam uma versão menos valorosa do filme? Caso ainda restassem dúvidas a respeito, a Mostra ressaltou o fato de que as tecnologias virtuais servem como excelente quebra-galho, mas jamais substituem a experiência na sala de cinema. Na possibilidade de escolher entre ser visto por mil pessoas em suas casas ou duzentas pessoas nos cinemas, a maioria dos criadores apostou na última opção.
Em segundo lugar, a qualidade dos títulos selecionados superou, com folga, os problemas de organização. Para cada filme fraquíssimo (o que A Lei fazia ali?), houve uma quantidade expressiva de obras excelentes, provocadoras, ousadas. Os grandes títulos de festivais foram os mais procurados: Annette, A Crônica Francesa, Titane, Um Herói e Memoria de fato atenderam às altas expectativas do espectador. Mas nem só de Cannes, Berlim e Veneza vive o evento paulistano: o público atento às obras de cineastas iniciantes pôde descobrir pérolas como A Garota e a Aranha, A Noite do Fogo, Salamandra, Zalava, Murina e Terra Silenciosa. A Competição Novos Diretores trouxe uma lista tão forte e diversificada que, caso constituísse sozinha a Mostra de São Paulo, já ofereceria um apanhado impressionante do cinema mundial.

Annette

O cinema brasileiro revelou os títulos mais aguardados desde suas passagens internacionais: Madalena e A Felicidade das Coisas estiveram em Roterdã, Deserto Particular estreou em Veneza, Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente foi premiado em Annecy, enquanto Marinheiro das Montanhas e Medusa passaram por Cannes. Karim Aïnouz e Aly Muritiba apresentaram o alto nível que se espera deles, e embora Laís Bodanzky tenha exibido um projeto menos empolgante com A Viagem de Pedro, foi importante descobrir as novas vozes de Thaís Fujinaga e Madiano Marcheti.
A pandemia de Covid-19 constituiu um tema central da 45ª Mostra, tanto nas salas de cinema, com espectadores espaçados e usando máscaras, quanto nas telas. O modo desajeitado como parte dos filmes lidou com a doença diz muito sobre o fato de estarmos próximos demais da tragédia para ter algum recuo. A menção ao coronavírus em Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental possui alcance limitado; e a brincadeira de Diários de Otsoga pareceu apenas isso: uma brincadeira. Filmes que evocaram a clausura de modo distópico, numa cautionary tale, decepcionaram (caso de Na Prisão Evin e Mar Infinito), enquanto as comédias livres, ressaltando a artificialidade do distanciamento social sem citá-lo nas conversas, obtiveram o melhor resultado (caso de Higiene Social).

Deserto Particular

Uma metáfora insistente na seleção se encontrou nos mares, rios, lagos e oceanos. Enquanto simbologia do desconhecido e do infinito, sendo tão sedutor quanto perigoso, o mar sempre ocupou espaço de destaque nos dramas. No entanto, a 45ª Mostra foi além na grande quantidade de narrativas que colocam seus personagens tristes para observarem as águas em forma de esperança (Stillwater: Em Busca da Verdade, Mar Infinito, A Felicidade das Coisas, Encontros, Diários de Otsoga), como sinal de traumas (Sol, Salamandra, Deserto Particular, Terra Silenciosa, Murina, Irmandade, Os Intranquilos, Ao Cair do Sol, Annette) ou evocação melancólica de um passado distante (Marinheiro das Montanhas, A Viagem de Pedro, 66 Questões da Lua, Bergman Island).
Uma parcela considerável das histórias buscou a fuga rumo ao desconhecido, ao vazio dos mares, desertos e montanhas. Diversos personagens encerram suas jornadas admirando o grande vazio, ou libertos numa planície infinita (O Compromisso de Hasan, A Caixa, A Noite do Fogo, France, Great Freedom, Lamb). Tendo sido realizados antes da pandemia ou durante o período de clausura, os filmes acabaram reforçando a vontade de escapar dos espaços internos e opressores (famílias, prisões, igrejas) rumo ao desconhecido. Filmes de viagens, a maioria delas traumáticas e malsucedidas, foram frequentes – caso de Sol, A Felicidade das Coisas, Annette, Terra Silenciosa, Salamandra, Pedregulhos, Murina, Compartment Nº6, Ahed’s Knee, Bergman Island, Ao Cair do Sol. Os personagens viajam para se perder, e talvez nunca mais voltar.

Salamandra

A 45ª Mostra esteve repleta de obras de cineastas mulheres, negros e artistas assumidamente LGBTQIA+, de países com pequena tradição cinematográfica. Esta foi uma boa oportunidade para mergulhar em propostas desconhecidas, e conhecer formas ousadas de filmar e pensar a sociedade (vide os estranhíssimos O Truque da Galinha e Um Forte Clarão). Enquanto os personagens fogem em delírios e jornadas hercúleas, o espectador sentado dentro da sala de cinema, talvez voltando às aglomerações pela primeira vez em quase dois anos, pôde se perder junto dos personagens.
A noção de escapismo sempre foi vista de maneira pejorativa: seria o cinema da diversão, da piada fácil e leve. Ora, a ideia de escapar através do contato com a realidade alheia, principalmente dentro de um Brasil de extrema-direita e em queda livre, soa tentadora. Mais do que isso, pode oferecer matéria de reflexão para lidar com a realidade em que vivemos. Para os governos autoritários, o cinema sempre foi perigoso por permitir tamanha imersão e descoberta de alternativas. Pela amplitude geográfica, estética e discursiva, o evento cumpriu seu papel de sensibilizar e provocar o espectador inerte pelas doenças e pelo caos econômico, político e social. Existe outro mundo lá fora, para além das ondas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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