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Sinopse

O cartunista Angeli sofre de uma crise de ansiedade e pensa em matar Bob Cuspe, o famoso personagem punk e agressivo criado na década de 1980. Enquanto isso, dentro de sua cabeça, o próprio Bob Cuspe pensa em como fugir de um cenário pós-apocalíptico com ajuda de Rê Bordosa, os Skrotinhos, Rhalah Rikota e os irmãos Kowalski.

Crítica

O projeto parte de um conceito fascinante: homenagear um cartunista de ficção por meio de uma ficção animada. Poucos diretores se prestam a estabelecer um diálogo entre a sua linguagem e aquela dos biografados, preferindo tratá-los como meros objetos de estudo ou especialistas no tema principal. Felizmente, Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente (2021) mantém uma relação dinâmica com Angeli, autor do material original e personagem da trama. Convertido em boneco de stop motion, o artista embarca num processo artístico que jamais copia seus traços, porém os homenageia através de um estilo próprio. O aspecto punk e catártico da galeria imaginada por Angeli - incluindo Rê Bordosa, os irmãos Kowalski e os Skrotinhos - está presente no interior de uma trajetória linear e coesa, controlada pelo diretor César Cabral. Isso inclui um longo segmento de documentário animado, distribuído nos três atos do longa-metragem graças à montagem paralela. Assim, o filme foge às armadilhas de endeusar ou explicar seu protagonista, preferindo que fale livremente por si próprio. Nas conversas, ele faz piadas, se repete, demonstra o cansaço de ter uma equipe de filmagem por perto. O quanto de ficção e de espontaneidade existe nestas interações? Difícil saber, e no fim das contas, isso importa pouco. O prazer da obra se encontra na fronteira entre linguagens.

O trecho documental contém os melhores momentos da narrativa. O roteiro navega habilmente entre cenas de natureza improvisada e espontânea (a chegada da companheira ao estúdio, as confissões sobre o prazer de matar cachorros em seus desenhos) e outras roteirizadas e controladas. Conforme os heróis de ficção, dentro da mente de Angeli, encontram uma saída aos seus problemas, eles se aproximam literalmente do “Criador” - nome utilizado de maneira voluntária por sua equivalência a Deus - e sugerem uma convergência das tramas. Há uma beleza singela e muito pertinente em transformar Angeli num personagem que encontra Bob Cuspe dentro do elevador de um prédio. Eles se observam no espelho, como lados de um único indivíduo, e depois se provocam, cobram explicações - o monstro confrontado ao cientista; Édipo ameaçando matar o pai. A transformação de Bob e Angeli em figuras de traços equivalentes, habitando um universo compartilhado, serve a diluir a hierarquia que costuma separar artista e obra, transformando Angeli numa persona criada pelo cartunista. Em termos psicanalíticos, a sugestão de que as figuras fictícias correspondam a partes reprimidas ou inconscientes também carrega significados férteis.

Em contrapartida, a história-dentro-da-história, correspondente à fuga de Bob Cuspe pelos esgotos oferece o trecho mais fraco. Embora a qualidade da animação seja excepcional, imaginando uma corporeidade expressiva ao protagonista e se divertindo com os mutantes de dentes afiados (versões pequenas e coloridas do cantor Elton John), a aventura se desenvolve pouco. Os pequenos adversários correm enlouquecidos sem rumo nem objetivos claro, ao passo que a aliança forjada entre Bob Cuspe e os irmãos Kowalski soa improvável. Eles desejam encontrar Angeli por razões mal desenvolvidas, o que leva a sequências descoladas do conjunto, a exemplo do homoerotismo no pedágio e o encontro com Rê Bordosa numa banheira de vodca. Compreende-se a vontade de rechear esta mente distópica com as figuras emblemáticas do cartunista. No entanto, a justificativa para a inserção de cada um deles é frágil, e chega a soar aleatória em determinados encontros. Pela personalidade do punk contestador, seria improvável que ele seguisse os Kowalski sem questionamento, ou que cedesse com facilidade aos avanços dos irmãos gêmeos. A figura de maior complexidade ainda é o personagem Angeli, e sempre que o roteiro o perde de vista, ameaça sair dos trilhos.

Felizmente, o apuro técnico e o trabalho de vozes sustentam o interesse do início ao fim. Milhem Cortaz cai como uma luva na voz grossa e debochada do anti-herói, enquanto Grace Gianoukas possui os maneirismos ideais para compor o temperamento de Rê Bordosa. André Abujamra e Hugo Possolo constituem duas belas escolhas para este universo masculino e autorreferencial, sem medo de ridicularizar a si próprio, enquanto na esfera feminina, a cartunista Laerte desempenha um papel afetuoso, espécie de irmã e protetora do desenhista em crise. Apenas Paulo Miklos destoa do rigor das atuações, sendo prejudicado pelos diálogos retóricos e redundantes dos Kowalski (“Não pode ser! Será mesmo ele?”, “É perigoso manter no espaço vários mutantes”). De qualquer modo, a ciranda de afetos descarta romantizar a trajetória do artista, ou atenuar seu percurso. Durante as entrevistas, Angeli fala com um despojamento ímpar a respeito de suas polêmicas e da evolução de seus traços. Tanto ele quanto César Cabral evitam utilizar esta oportunidade para fazer um retrato edulcorado dos quadrinhos brasileiros. Ainda que esteja dentro da casa do protagonista, ao lado da namorada, a representação via animação stop motion cria distanciamento do real e sublinha o interesse pelas criações de Angeli, ao invés dos fatos marcantes de sua história. 

Enquanto isso, o autor cogita a possibilidade de fazer um “filme sobre a sua vida”, o que se desenvolve conforme ele conversa, é claro. A metalinguagem em Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente possui um efeito simples e eficaz: ela jamais se pretende escondida ou sutil, privilegiando o abismo de referências que aludem ao esforço do desenvolvimento artístico, porém à distância do clichê do artista torturado. Ao colocar lado a lado os desenhos 2D com a animação em stop motion, colorindo ao traço em preto e branco e oferecendo volume ao referencial chapado (num trabalho eficiente de direção de fotografia), Cabral homenageia os quadrinhos enquanto proporciona algo que apenas o cinema poderia oferecer. Neste processo, discute o desenvolvimento dos desenhos, da animação, do cinema em geral, além do caso específico das adaptações entre linguagens diferentes. Ele concebe um percurso recheado dos palavrões e brincadeiras adultas de Angeli, embutidos numa estrutura linear e tradicional, conveniente aos filmes visando alcançar o público amplo. Existe um encontro saudável e orgânico de estéticas e pontos de vista, sem que um precise se sacrificar para incorporar o outro. A adaptação deixa de ser uma briga frutífera ou uma traição do original, convertendo-se na arte do encontro.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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