Crítica


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Sinopse

Aos poucos, a população da Terra começa a deixar o planeta rumo à recém-colonizada Proxima Centauri, onde terão uma vida melhor. No entanto, Pedro tem sua passagem ao outro mundo negada. Quando ele conhece Eva, também presa à Terra, começa a reavaliar a sua situação num planeta abandonado.

Crítica

Um dos motivos mais claros para que as ficções científicas sejam raras dentro de cinematografias pouco estabelecidas diz respeito aos custos de produção: o imaginário das viagens espaciais, com suas naves e astronautas costuma exigir, em comparação com as ferramentas de Hollywood, uma quantidade de recursos inacessível à maioria dos países. No entanto, alguns projetos recentes de destaque no gênero enxergam na dificuldade financeira um motor de criatividade para narrativas e formas de representação inovadoras. No Brasil, Adirley Queirós imaginou jornadas fantásticas de minúsculo orçamento em Era uma Vez Brasília (2017), enquanto Juliana Antunes concebeu a viagem no espaço-tempo através de simples truques de montagem em Plano Controle (2018). Neste contexto, a ficção científica se converte num gesto político, uma possibilidade de reafirmar a potência da produção independente a partir de um gênero restrito às indústrias hegemônicas. O ato de abraçar o cinema-espetáculo dentro das culturas não-estadunidenses se torna uma afronta por si própria. O português Mar Infinito (2021) pertence a este grupo de filmes dissidentes, voltados à capacidade de imaginação contra o obstáculo orçamentário.

O diretor Carlos Amaral concebe a partida a um astro recém-colonizado, pela perspectiva daqueles que permanecem na Terra. Pontos luminosos nos céus indicam algum indivíduo viajando em sua cápsula individual rumo a Proxima Centauri, lar eleito para a colonização humana. Entretanto, um jovem (Nuno Nolasco) tem sua passagem recusada devido à fobia à água, decorrente de um trauma passado. Ele dedica os dias a tentar fraudar o sistema eletrônico de seleção para incluir seu nome entre os escolhidos. De resto, perambula por uma cidade vazia, frequentando um único lote deserto e coberto por névoa, onde resiste um food truck sem clientes. O autor retira desta premissa o desespero inerente aos filmes-catástrofe: a Terra não sofreu alguma forma de colapso natural ou químico. As pessoas viajam ao local distante porque podem, e talvez o deslocamento permita uma vida mais interessante. A princípio, inexiste impedimento para que se continue em nosso planeta, exceto pela sensação de abandono. Pedro é desprovido de amarras familiares, profissionais, ou de sonhos para o futuro. Ele apenas se entedia no apartamento vazio, na falta de contato com outras pessoas. Enquanto alguns cineastas concebem a possibilidade de extinção da humanidade, Amaral prefere imaginá-la em perigo pela solidão.

Para representar este cenário desolador, ele recorre à simbologia clássica desta forma de cinema. Corpos flutuam em silêncio na água; sistemas avançados de tecnologia são representados por computadores antigos ligados a centenas de cabos; Proxima Centauri se limita a um lamaçal registrado por drones, enquanto as pessoas vestem os tradicionais uniformes espaciais, com suas insígnias costuradas ao tecido. Pouco se nota de original nesta concepção futurista, e em particular, pouco se encontra de tipicamente português. O autor recorre a uma versão de baixo orçamento dos cânones norte-americanos, sem adaptá-los nem subvertê-los à realidade local. As vozes robóticas das assistentes virtuais guiando o processo, a sensualidade das piscinas azuladas e dos hotéis decadentes cidade afora remetem a uma iconografia vista múltiplas vezes, com maior ousadia, em projetos anteriores. A ausência de uma construção social seria necessária para a que a lógica de exclusão soasse palpável: há pouquíssimos personagens em cena, enquanto o governo, as administrações locais e os coordenadores das viagens estão convenientemente ausentes. As figuras do ermitão perito em tecnologia, preso a uma garagem qualquer, e da mulher rica abandonada numa mesa solitária tampouco ajudam a dissipar a sensação de déjà vu. 

Enquanto isso, Mar Infinito se transforma numa nostálgica aventura romântica entre duas figuras que se conhecem por acaso e se aproximam por constituírem a única possibilidade de interação alheia. Eles se apaixonam em poucos minutos, de maneira lânguida e quase infantil, sussurrando frases de efeito um ao outro: “É isso que somos, memórias?”. “Talvez”. “Procure-me do outro lado do mar infinito”. “O que quer que seja que estás à procura, está la fora… ou lá em cima”. Os heróis possuem uma consciência clara de seus problemas e limitações: “Vou deixando sempre para o dia seguinte e acaba por não acontecer. É algo que se aplica à minha vida em geral”. O amor se transforma em dependência, e a tristeza se converte numa forma de poesia próxima da autoajuda - o relacionamento permite aos solitários aceitarem melhor a sina de segregação social, além de fornecer um motivo para seguirem adiante. Nuno Nolasco e Maria Leite interpretam os protagonistas num torpor lânguido: ela o ensina a nadar; e na cena seguinte, ele a ensina a andar de bicicleta. Nenhuma das duas atividades será utilizada para fins práticos, simbólicos, afetivos. Juntos, os dois encontram pequenas ações com as quais ocupar os dias tediosos.

A produção portuguesa aparenta mirar na afetividade morosa, herdeira de produções como Ela (2013), de Spike Jonze, igualmente adepta ao retrofuturismo, à representação humanizada da tecnologia e empática quanto ao vazio da multidão solitária. No entanto, produz um filme hipster sobre jovens tentando se encontrar, descobrir seu valor, seu objetivo na vida. Eles existem para si mesmos, num universo bolha incapaz de representar um dilema global e um problema social. O casal perambula em busca de migalhas de carinho num mundo não exatamente opressor, apenas pouco acolhedor. Assim, dormem juntos, colam papeizinhos à janela, fazem promessas para o futuro. Amaral utiliza o motivo da ficção científica para aprofundar o escopo e a gravidade do sentimento de incompletude de uma dupla ensimesmada. Trata-se de uma obra ciente de sua pós-modernidade, decidindo tolerá-la e mimá-la, para garantir que seus problemas sejam, de fato, os mais importantes do(s) mundo(s). Este é um dos casos em que a ternura com os personagens se confunde com paternalismo e condescendência.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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