Crítica


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Sinopse

Y é um cineasta contestador que viaja a uma cidadezinha israelense para apresentar seu filme num centro cultural. Chegando no local, descobre que terá que preencher um formulário da prefeitura sobre o tema da obra, o que talvez resulte num gesto de censura e represália. Começa um jogo de amizade e manipulação entre o homem e Yahalom, a jovem representante do governo local, em nome da liberdade de expressão.

Crítica

Antes de debater a liberdade de expressão ou outros aspectos presentes em Ahed’s Knee (2021), o elemento que realmente chama atenção na obra franco-israelense diz respeito ao trabalho de câmera. O diretor e roteirista Nadav Lapid se diverte ao fazer amplos e impensáveis movimentos pendulares na imagem. Conforme os protagonistas Y (Avshalom Pollak) e Yahalom (Nur Fibak) conversam, a imagem dispara com velocidade ao teto e volta ao rosto do interlocutor, como se fosse lançada por um estilingue. Quando dois homens conversam dentro de um carro, o caminho mais natural se encontraria na alternância entre os rostos, no entanto, o diretor de fotografia Shaï Goldman faz giros de 360º passando por fora do veículo e retornando à expressão daquele que escuta. No gesto de pegar castanhas dentro de um saco plástico, a câmera corre para acompanhar a ida e volta das mãos, e durante uma dança de Y em terras áridas, o drone dança com ele, elevando-se aos céus, parando à altura da virilha, focando-se nas orelhas, nas sombras projetadas ao chão. A imagem aparenta possuir vida própria, agindo ao bel-prazer, sem qualquer condicionamento ao filme, nem aos personagens.

As estranhezas são tão frequentes e ostensivas que se sobrepõem a qualquer tema presente por trás da aparência cool, rebelde, descolada. O aspecto disruptivo de Synonymes (2019) se intensifica nesta obra que pausa a narrativa para revelar uma espécie de videoclipe trash e tragicômico do exército israelense, além de um longo acesso de raiva do personagem principal contra sua simpática interlocutora. A sinopse oficial menciona a luta do cineasta diante da censura em seu país e do câncer da mãe idosa, porém ambos os fatores ocupam função secundária. No que diz respeito à censura, ele é levado a preencher um documento detalhando o teor de suas obras incendiárias, mas pode fraudar, ignorar as demandas, atenuá-las. Caso desejasse, com razão, protestar contra o formulário, poderia fazê-lo diretamente com os responsáveis, no entanto, despeja sua ira contra a bibliotecária, fã de seu trabalho. Já a saúde da mãe se torna ínfima neste percurso: Y deixa de demonstrar qualquer preocupação específica com este problema. O drama tenta se vender por um prisma mais humano e linear do que realmente possui. No fundo, ele constitui um exercício de estilo de Nadav Lapid como bad boy, um enfant terrible dedicado a testar os limites de seu caos criativo em festivais de cinema - algo que tem lhe rendido ótimos frutos até agora.

O ponto de vista se identifica sem reservas com Y, um sujeito arrogante, grosseiro, misógino e misantropo. Ele se estima melhor que o público, como um antro de resistência intelectual diante dos pobres frequentadores de um centro cultural no vilarejo de cinco mil habitantes. Y espera “educar" o espectador por quem manifesta profundo desprezo, através de suas criações que abordam a limitação intelectual na Israel contemporânea. Com aparência de rockstar, mantendo as roupas de couro pretas e os óculos escuros, tenta contratar garotas de programa para encher a plateia e explica o motivo de ocultar o rosto nos aplicativos online: “Sou famoso”. Existe certo grau de escárnio em relação ao artista ensimesmado, mas não a ponto de criticá-lo nem romper com ele: a perspectiva permanece presa ao seu ponto de vista, e o roteiro garante que será desculpado pelos ataques desferidos contra os frequentadores da sessão. O herói corresponde à figura preocupada em gritar verdades e denunciar o caos a qualquer um, sem garantir que o teor seja compreendido. Para ele, quanto menos pessoas o apreciarem, melhor, porque sustentará o status desejado de outsider. 

No total, Ahed’s Knee deve contar com uma dezena de cenas no total, centradas apenas em Y e Yahalom. O protagonista evita se abrir à cultura local e ao debate com as diferenças - vide o ápice da longuíssima tirada aos berros, quando escancara verbalmente a decadência moral de seu país. O gesto constituiria uma bela afronta caso se destinasse àqueles que realmente precisam ouvi-la, ou encontrasse uma forma estética produtiva de fazê-lo. Do modo com que Lapid a apresenta, ela traduz a soberba do homem branco, heterossexual e supostamente progressista, que se enxerga na posição de marginal perseguido, mesmo que ele não tivesse sofrido qualquer gesto de censura até aquele momento. É difícil separar a postura de Lapid daquela de seu alter-ego, criticando a vacuidade do discurso político de maneira vazia, e o individualismo da sociedade atual em postura vaidosa e egocêntrica. Y poderia representar uma parcela específica da produção cultural, sendo devidamente ridicularizado, questionado ou simbolicamente punido por seu comportamento. Ora, ele tem o caminho livre em sua valentia unilateral: o homem esbraveja contra o governo para pessoas que provavelmente o defendem, tendo acesso livre para se comportar como deseja, sem represálias de Yahalom ou dos demais moradores. A exemplo de Y, Lapid dirige sua bravura ao público progressista que já estaria disposto a abraçar tais questionamentos. Ele esperaria converter alguém à causa genérica da pobreza intelectual do mundo? Alguém estaria escutando essa constatação pela primeira vez?

O joelho de Ahed, mencionado no título, diz respeito à ativista Ahed Tamimi, sobre quem Y pretende desenvolver um longa-metragem. Partindo da ameaça real de tiros contra o joelho da garota, para que pare de se deslocar e denunciar a invasão de territórios palestinos, concebe uma biografia que jamais se desenvolve ao longo da experiência do protagonista frente à censura. Ahed será transformada na cena inicial em ícone pop-rock, cantando, batendo no joelho com as unhas pintadas, mas sua luta segue distante das indagações narcisistas de Lapid/Y. Embora seja louvável a decisão de levar às formas um novo olhar à interação entre artistas e governo, entre homens e mulheres, o gesto apenas desconstrói expectativas sem fornecer algo frutífero sobre os escombros. O filme se conclui numa brincadeira retórica, o fazer por fazer, gritar por gritar. Y nunca se confronta de fato aos censores (figuras bem diferentes da sorridente e tolerante Yahalom), aos espectadores contrários, aos detratores de Ahed Tamimi. Ele aparenta ter poderes totais, fazendo o que quiser. Neste sentido, sua coragem se torna covarde: é fácil provocar uma plateia vazia. Mais rico e complexo teria sido medir sua força e status frente aos poderosos, ausentes desta demonstração condescendente de masculinidade tóxica.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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