Crítica


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Sinopse

Durante um fim de semana, Ante recebe em sua casa de veraneio o antigo amigo e patrão, Javier, que está interessado em comprar um terreno de seu hóspede. O pai controlador exige que a filha se comporte e a esposa seja prestativa ao comportamento do visitante. No entanto, a presença do estrangeiro sedutor perturbará as tensas relações familiares.

Crítica

Pelo menos um terço das imagens deste drama se passa sob as águas. Com seus óculos e equipamentos de mergulho, os personagens se insultam, brigam, se seduzem e desesperam enquanto submersos. Eles se ameaçam, fazem as pazes, forjam alianças frágeis. Isso ocorre com impressionante riqueza de direção e controle imagético por Antoneta Alamat Kusijanovic, cineasta em plena faculdade de seus conhecimentos de linguagem. Ao longo de poucos dias de narrativa, ela permite que os quatro protagonistas se confrontem em intensidade crescente, sem sabermos se estão prestes a se matarem ou fazerem sexo uns com os outros - talvez ambos. O autoritário e machista Ante (Leon Lucev), o melhor amigo dele, o belo e conquistador Javier (Cliff Curtis), a esposa do primeiro e antigo amor do segundo (interpretada por Danica Curtic) e a garota Julija (Gracija Filipovic) formam uma ciranda tóxica. Num cenário onde dinheiro e erotismo se tornam moeda de troca, eles testam seus poderes diante do status alheio. As manifestações de amor e agressão se convertem num gesto único para este drama que carrega a tensão de um suspense e a perversidade de um horror.

No entanto, a gradação permite que os elementos de distúrbio se instalem aos poucos, organicamente: Ante espera vender um terreno ao ex-colega e patrão, que visita sua vila paradisíaca durante alguns dias. Caso o acordo seja fechado, pai, mãe e filha terão uma vida confortável na capital croata. Por isso, é fundamental agradar ao visitante, numa manifestação de cortesia que ultrapassa alguns princípios pessoais: o pai fica incomodado com a sedução do homem em relação à esposa e à filha, porém não o impede; a garota se encanta com o estrangeiro, embora prefira “recomendá-lo” à mãe, para substitui-lo ao marido machista; e esta tenta articular o afeto controlador dos dois, protegendo a menina, mas competindo com ela, ao passo que aprecia se descobrir o centro dos desejos de ambos. Para além dos laços familiares, estes personagens são adultos e autônomos, razão pela qual os relacionamentos tocam em certos tabus sociais. Não há vítimas nem figuras passivas neste contexto: tanto aqueles que gritam quanto os que permanecem calados exercem uma forma de manipulação nos demais. O roteiro oferece um experimento intricado sobre os limites da estrutura patriarcal em oposição ao dinheiro e à moral cristã. Qual dos dois será corrompido primeiro? 

Os atores estão bem dirigidos para alternarem instantes de leveza e carinho com outros explicitamente violentos, ou então ambíguos. No papel principal, Gracija Filipović demonstra uma convicção adulta misturada com rebeldia adolescente. O fato de os planos nunca serem apresentados com antecedência - descobrimos as intenções dos heróis somente quando estão sendo executadas - posiciona o espectador em estado de alerta, pronto às inúmeras guinadas propostas ao longo de modestos 92 minutos. Em termos de organização, o filme se assemelha a uma partida de xadrez de alto nível, onde os lados dispõem de igual possibilidade de vitória a partir das peças idênticas - afinal, se eu preciso te respeitar porque você é meu pai, você precisa me respeitar por ser sua filha; se a mãe pode exercer um flerte discreto com o forasteiro, contanto que não passe à ação, a menina também pode fazê-lo. A interação se faz dinâmica e ininterrupta no entrar e sair de cômodos, passando do pátio aos barcos, do cais às águas. Os jogos de olhares são provocadores, manejados com precisão pelos atores e pela montagem: sabemos exatamente quem tem ciúme, raiva ou inveja de quem, e quais personagens flagram esta manifestação silenciosa na expressão alheia.

Conforme os lutadores se amam e digladiam à beira-mar, o filme abraça uma sequência de símbolos potentes. O principal deles diz respeito à murina do título, um tipo de moreia rara e difícil de caçar por ocupar as profundezas da água e se movimentar com rapidez. Ela se transformará no troféu preferido de pai e filha para provarem seu valor ao estrangeiro. Adiante, o animal terá outro significado em relação a Julija. O vestido vermelho da mãe e o biquíni novo da filha também servem aos jogos entre a infantilidade e a maturidade, ou entre o presente desinteressado e a insinuação erótica. Kusijanovic filma os corpos com naturalidade, de maneira frontal, seja no caso dos seios da mãe em primeiro plano, dentro do banheiro, ou na nudez do pai quando troca o calção na lancha familiar. O capital erótico e o capital financeiro se unem de tal modo que o sujeito poderoso transborda de libido, enquanto o mais frágil tenta se valer pela conquista romântica. “Você merece coisa melhor”, dispara a filha à mãe, antes de solicitar ao turista: “Me leva com você”. O vai e vem das alianças é registrado por uma câmera atenta e discreta, acompanhando a adolescente por todos os cantos e destacando-a na multidão, sem chamar atenção a si própria. Os sons da água, do vento, da música e das conversas paralelas produzem um ambiente repleto de estímulos para além da pulsão escópica - vide a excelente sequência do grupo de jovens do outro lado da costa, observados com curiosidade por Julija.

Atenção: spoilers a seguir!
Filmes de tamanha qualidade geram apreensão quanto ao desenvolvimento (o sublime nunca se distancia do horror): será que a cineasta conseguirá manter este nível até o final, sem decair? Poderá oferecer um desfecho à altura da complexa rede de subjetividades? Ora, Murina se encerra num ponto alto quando volta à metáfora da moreia e à libertação de sua heroína. A diretora aposta num universo de agressões cotidianas, toleradas socialmente e que, por isso mesmo, nunca assustam ninguém nem impedem as sucessivas festas e jantares. Javier testemunha as provocações calado, com certa satisfação vaidosa por ser o motor de tamanhas paixões. Ora, o caldeirão precisaria se encerrar numa explosão simbólica, reunindo o mar, a murina, a morte e o abandono numa imagem só. Pela solução encontrada, a menina se converte em peixe; o pai, em presa; e o visitante, na figura do patriarca que deixa a família quando lhe convém. A fuga da garota será fantástica, tão otimista quanto utópica - apesar de suas habilidades de nado excepcionais, jamais poderá sobreviver tanto tempo à deriva. O sorriso de satisfação na jovem que quase mata o pai biológico para abraçar a figura do pai simbólico se traduz num gesto desesperado, irrefletido, que talvez signifique sua perdição. Pelo menos, a imagem encontra nesta conclusão uma ideia de fluxo contínuo onde a garota se funde com a água, transformando-se no bicho incontrolável e livre.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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