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Sinopse

Durante a pandemia de Covid-19, o casal Damien e Leila permanece em sua casa no campo com o filho pequeno. Enquanto ele pinta quadros visando uma exposição futura, ela fabrica e restaura móveis para os moradores da região. No entanto, as crises de bipolaridade de Damien ameaçam a saúde do casal e testam os limites da estrutura familiar.

Crítica

Damien (Damien Bonnard) é diagnosticado com bipolaridade. Da primeira à última cena, este será o único motor de conflito do longa-metragem. Em seus períodos de crise, recusando-se a tomar os remédios e ir ao hospital, o pintor age de modo maníaco, irresponsável, para o pavor crescente da esposa Leila (Leïla Bekhti) e do filho Amine (Gabriel Merz Chammah). Os gestos pitorescos no início se tornam motor de inquietude, cansaço e, finalmente, desespero. Partindo de um roteiro escrito por sete pessoas, o diretor Joachim Lafosse decide esticar o preceito de estabilidade familiar e amor incondicional até o limite da ruptura. É possível ser um pai amoroso quando se manifesta crises agudas do distúrbio? O projeto acredita que não. Assim, converte-se num drama clássico, com D maiúsculo, no qual tudo é sofrimento, rejeitando momentos de atividade cotidiana ou respiros na trama. Os Intranquilos (2021) asfixia estes três personagens e também seu espectador através de uma sucessão vertiginosa de cenas de brigas. O cineasta belga realmente acredita que os sentimentos constituem a principal matéria do cinema, precisando ser exteriorizados e explicitados para o espetáculo do público.

Embora tenha a mão pesada para a abordagem do tema, o autor sabe conduzir a dinâmica das imagens a partir de bons atores. Damien Bonnard calibra a composição para que o estilo frenético do protagonista se traduza na alegria exacerbada e no corpo inquieto. O olhar continua sério, focado, tentando em vão expressar o amor pela esposa e o filho pequeno. Junto ao cineasta, Bonnard faz o possível para evitar a posição de vilão ou de vítima. Algo equivalente ocorre com Leïla Bekhti, que recebe um papel ainda mais delicado. Ela poderia se restringir às cenas de lamento, visto que esta carpinteira sofre mudanças menos drásticas do que o marido bipolar. Felizmente, a talentosa atriz encontra variações preciosas entre a tolerância, o afeto e a exaustão física e emocional. Confrontada ao comportamento crônico do esposo, carrega um amargor que talvez se traduza em zelo excessivo. Já o pequeno Gabriel Merz Chammah se limita a fazer o mínimo possível, reagindo às explosões alheias - provavelmente a melhor escolha em se tratando de um ator mirim. Juntos, desempenham uma coreografia de grandes gestos, avessa a sutilezas, porém coerente com o percurso narrativo e estético proposto por Lafosse.

A este respeito, a câmera na mão acompanha os personagens em planos abertos e móveis, com profundidade de campo infinita, propícia a captar qualquer gesto aleatório de Damien, ou as reações transtornadas das dezenas de coadjuvantes ao redor. Acredita-se que o autor tenha dado bastante liberdade ao intérprete principal agir de acordo com as circunstâncias, preferindo adaptar o trabalho de fotografia ao seu corpo, ao invés de controlá-lo para as necessidades do enquadramento. No entanto, as luzes e as cores relembram a paixão do cineasta por um universo intenso e saturado, literalmente. Ele converte seu filme num mosaico azul-esverdeado, em tons reforçados na pós-produção, a ponto de jamais obter brancos profundos - mesmo os carros e barcos desta cor têm um aspecto colorido. O curioso efeito íris, em termos de luz e foco, toma conta de instantes cotidianos, escurecendo as bordas e chamando atenção ao procedimento da mise en scène. Estes recursos se justificariam caso a história coincidisse com a perspectiva de Damien. Em contrapartida, o olhar oferecido é externo e onisciente, ou seja, testemunhando simultaneamente as ações do trio sem adotar um ponto de vista em particular.

O roteiro impressiona pela linearidade: nenhum dilema virá para equilibrar o problema de saúde, e nenhuma figura próxima surge para funcionar como escape à responsabilidade de Leila (o pai do pintor desempenha função mínima). Os médicos são ocultos, assim como melhores amigos e os compradores dos quadros pintados por Damien. Os Intranquilos segue uma narrativa obsessiva e claustrofóbica ao longo de quase duas horas de duração. Sem saber como interromper este ciclo de violências crônicas, a história se interrompe de modo abrupto, deixando de proporcionar um desfecho aos protagonistas, ou apontar a qualquer transformação num futuro imediato. Algo semelhante ocorria com Transtorno Explosivo (2019), outro filme focado no ultrarrealismo de um personagem em situação patológica, até simplesmente se suspender, numa forma de alívio artificial e bruto. Ainda que ofereça um belo trabalho humano, tentando compreender as atitudes de todos os envolvidos, cabe questionar o que Lafosse teria a dizer a respeito deste dilema, ou da bipolaridade, para além da constatação fatalista de sua existência. Por esse ponto de vista, qualquer relacionamento afetivo com um indivíduo bipolar se romperá mais cedo ou mais tarde. É improvável que psiquiatras, espectadores diagnosticados com esse quadro e seus familiares enxerguem o tema com o peso de tamanha condenação. 

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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