Crítica


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Sinopse

Soldados da Polícia Militar ocupam um bar decadente onde almoçam sem pagar a conta. Enquanto se alimentam, esses sujeitos falam sobre procedimentos considerados comuns em suas rotinas repletas de controvérsias.

Crítica

Da sinopse ao material de divulgação, passando pelos primeiros minutos deste longa-metragem, explicita-se a vontade de discutir a polícia brasileira. Não se trata da corporação como um todo, e sim de uma parcela muito específica representada por sujeitos corruptos, violentos, perversos e “burros”, em suas próprias palavras. Seis homens e uma mulher uniformizados se sentam ao balcão de um boteco, revelando o ódio por pobres, mendigos, consumidores de drogas, mulheres, ativistas dos direitos humanos. Aos risos, narram seus episódios preferidos de humilhação e agressão, a exemplo do momento em que colocaram uma faca na vagina de uma mulher, ou enfiaram uma lista telefônica no ânus de uma criança. São boçais, animalescos e cientes disso. No Brasil de 2021, esta forma de pensamento extremista encontra ecos evidentes nas altas cúpulas do poder federal. No entanto, o diretor Amadeo Canônico jamais vai longe o bastante para efetuar conexões diretas com a autocracia bolsonarista, nem para contextualizar seu discurso num período específico da contemporaneidade. Ele prefere abordar uma noção do policial detestável presente no imaginário popular, sem questionar causas ou consequências do fenômeno. Constata-se o caos nas forças da ordem, apenas.

A Lei (2021) utiliza procedimentos formais tão rígidos quanto simples. Um policial por vez dialoga diretamente com o público durante longos minutos nos quais o resto do mundo permanece em silêncio. O boteco não tem barulho, música, conversa, pessoas transitando. O projeto assume seu dispositivo teatral, oferecendo o palco a um protagonista por vez, cedendo a atenção ao próximo, logo ao lado. Este seria o equivalente de um foco de luz se acendendo no rosto de um ator sobre a cena teatral, enquanto os colegas aguardam sua vez no escuro. A escolha pelo plano-sequência reforça esta aparência, afinal, a câmera se contenta com a placidez de observar estas figuras, deixando de emitir qualquer forma de contraste ou divergência por si própria. A “Policial 1” presta seu depoimento, e ao final, passa a vez ao "Policial 2". Os sete testemunhos ocupam a integralidade da narrativa que atinge modestos 70 minutos de duração e desperta a aparência de um conceito arrastado até atingir o tempo mínimo do longa-metragem. O estranho enquadramento à altura do balcão se preserva do início ao fim, e na hora dos raros giros em 90º, para focar no protagonista em outra parte do balcão, a direção de fotografia enfrenta dificuldade para estabilizar a imagem. Não há variação de luz, ritmo, velocidade, dinâmica. 

Assim, passados cinco minutos de experiência, o espectador já terá conhecido o conceito do filme inteiro - o que não o impede de se repetir, se estender, girar em torno do mesmo eixo. Os policiais anônimos funcionam como um só, por se expressarem num único tom exagerado, repleto de escárnio e maldade nos olhos, cuspindo e rindo dos abusos relatados. Eles enveredam por um discurso metalinguístico sobre serem burros, terem um linguajar melhor do que aquele utilizado na maioria das interações, e perfeitamente ciente das duas coisas - da fama de ignorância, e de suas limitações. Entretanto, a pseudo confissão jamais exprime alguma forma de remorso ou ponderação, pelo contrário, eles reafirmam, orgulhosos, seus abusos cotidianos. Ora, o fato de serem conscientes de sua crueldade não os torna menos cruéis, apenas cínicos. Seria fácil para o filme se dissociar dos tipos caricaturais e vilanescos, porém a narrativa está apaixonada demais pelo espetáculo da baixeza moral e da retórica da escrotidão para apresentar qualquer forma de nuance, de contraste ou variação entre os discursos. O fiapo de roteiro bate numa única tecla, ao limite da exaustão: somos boçais, sim, sabemos disso, e continuaremos sendo. 

A lógica do confronto óbvio e da exteriorização do mal fica distante de alguma forma de reflexão. A vontade de chocar se sobrepõe a qualquer provocação intelectual ou convite ao debate. Neste caso, a lição vem pronta, de modo maniqueísta e grosseiro, esperando o espectador convencer pela repetição e o teor superlativo das interpretações. É importantíssimo discutir a respeito da organização policial e de suas derivas frequentes, a partir de fatores fundamentais como a formação belicista, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, os baixos salários, a alta periculosidade do cargo. O drama raivoso passa longe destes tópicos, atendo-se às reações epidérmicas da menção a estupros, torturas, castração, misoginia e uma misantropia generalizada. O fato de se dizerem burros, de questionarem a própria linguagem em nada ajuda a aprofundar o dispositivo - este seria o equivalente de ter, dentro de uma roda de conversa, um único indivíduo gritando a plenos pulmões, sem deixar os outros falarem, nem escutar opiniões contrárias. O problema se resume à superficialidade assombrosa, típica da filosofia de bar (pertinente ao cenário, portanto), onde se diz que o mundo está perdido, nada mais tem conserto, o Brasil vai para o buraco etc. Este pensamento catastrofista, enxergando todos os policiais (ou políticos, ou pobres) como seres desprezíveis, foi um dos motores que conduziram ao empoderamento da truculenta extrema-direita que hoje ocupa o Palácio da Alvorada.

Por isso, paira um ranço fascistoide na obra que, ao denunciar a lama das instituições, não consegue se dissociar dela, nem propor algo diferente - via discurso, estética, metáforas. O projeto relembra os filmes brasileiros dos anos 1990, realizados por diretores jovens que se estimavam muito subversivos por colocarem personagens gritando por-ra, ca-ra-lho, bu-ce-ta, pu-ta-que-pa-riu a plenos pulmões, direto para a câmera, com toda a raiva possível. O cinema nacional foi refinando sua linguagem política, a ponto de quase descartar essa forma de rebeldia adolescente na qual as frases de efeito substituem propostas de reflexão (com raras exceções aqui e ali, caso deste filme e de O Buscador, 2019, por exemplo). Compreendeu-se a necessidade de levar a violência à estética, e dialogar com o espectador ao invés de tratá-lo como um ser apático e pouco inteligente, esperando por alguma forma de ensinamento instantâneo. Termina-se por criar uma obra de “lacração”, para utilizar o vocabulário dos tempos de Internet, no qual o teor incendiário busca esconder a vacuidade do discurso. O resultado tem pouquíssimo a dizer sobre a polícia, a sociedade brasileira, a opressão concreta sofrida na favela e nas periferias. Ele não oferece uma única imagem digna de interesse estético ou potência em si própria. A provocação juvenil soa magra demais para rechear um longa-metragem.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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