Crítica


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Sinopse

Três garotas vivem numa pequena comunidade mexicana sobre as montanhas. Elas ouvem falar dos casos de violência policial, dos ataques das milícias e do constante sequestro de mulheres pela região. Conforme crescem, vivenciam de perto estas ameaças enquanto suas mães tentam protegê-las do inimigo.

Crítica

Desde as primeiras cenas, A Noite do Fogo (2020) constrói a sensação de perigo vinda de todos os lugares, e em consequência, de lugar nenhum. Mãe e filha cavam com as próprias mãos uma cova, e depois a menina se deita sobre o buraco. Por quê? Uma cobra ameaça as crianças na floresta densa, e uma fumaça estranha aparece nas montanhas ao fundo. Carros velozes, de vidros escurecidos, atravessam o pobre vilarejo sem que o espectador descubra seus ocupantes. O drama prepara o espectador para alguma irrupção iminente de violência, ou talvez para a impressão de que algo está fora do lugar em Jalisco, México. As mulheres comandam a narrativa: as mães trabalham, pegam em armas, protegem as crianças. Já os homens foram enviados para o plantio numa fazenda distante, abandonaram a família, e talvez ocupem o interior dos veículos assustadores. Em tempo, essas perguntas serão respondidas e contextualizadas. No entanto, servem a introduzir um projeto onde a ambientação carrega tanto significado quanto as falas e as reviravoltas do roteiro. Muito mais potente do que colocar na boca de algum personagem um diálogo do tipo “Estamos correndo risco de morte”, a cineasta Tatiana Huezo desenvolve o dia a dia de indivíduos perseguidos.

Além disso, ela oferece o ponto de vista às crianças, algo inteligente por diversos motivos. Primeiro, a ação dos grupos organizados no México já foi explorada à exaustão pelo cinema-espetáculo adulto, empolgado com o crime desenfreado. Aqui, os delitos se tornam subentendidos ou mal-entendidos: como as meninas não compreendem as motivações dos ataques, convertidos em tabu pelas mães, o público tampouco os enxerga de perto. Segundo, a opção permite um olhar de estranhamento: esta organização social curiosa recebe um verniz próximo do realismo mágico. O espectador nunca é levado a normalizar os atos, nem a se sentir indiferente: os crimes aparentam antinaturais, impertinentes, estrangeiros ao meio. Sabemos que as colegas de classe das protagonistas desaparecem, deixando as casas abandonadas. O que houve com elas? Conforme os indícios se desenvolvem, o público é levado a buscas suas referências pessoais para o aliciamento, o estupro, os assassinatos - nossa imaginação será mais brutal do que qualquer cena concretizada em tela. Terceiro, esta escolha favorece a identificação: os dilemas típicos do primeiro amor, da dificuldade de aceitar o corpo e da rejeição aos pais podem ser facilmente reconhecidos pelas vivências muito distantes das montanhas.

Ao invés de destacar uma trajetória de exceção, a obra busca um retrato universal de desigualdades sistêmicas de gênero, raça e classe social. Huezo explora estas questões através de potentes símbolos: as garotas de cabelo cortado bem curto, para que a aparência masculinizada as proteja dos agressores; a estudante com dificuldade de desenhar o próprio corpo e descrevê-lo; a admiração meio paterna, meio romântica pelo professor Leonardo; a intromissão na casa vazia dos moradores desaparecidos. Em se tratando de uma violência secreta, emudecida, torna-se sintomático que as brincadeiras entre o trio de protagonistas digam respeito a adivinhar o pensamento uma da outra, ou ficar imóvel o máximo possível sob um lençol. A diretora efetua belíssimo trabalho de representação pela ausência: jamais vemos os comandantes dos helicópteros que despejam veneno sobre os moradores, nem os dirigentes das mineradoras. No entanto, existem armas, fogo, facões e outros perigos vindos destas formas distantes. A gravidade do contexto sociocultural se converte numa sucessão de metáforas, o que jamais equivale a atenuar o discurso, apenas convertê-lo em iconografias de múltiplos significados. Assim, a “noite do fogo” do título pode despertar interpretações variadas. A autora privilegia o poder das sugestões, ao invés das explicações.

O resultado não teria tamanho impacto sem uma interpretação adequada das atrizes mirins, que ocupam a maioria das cenas, em especial as mais violentas e incontroláveis. Ora, o drama apresenta um elenco excelente, dirigido e preparado de modo a produzir uma riqueza excepcional nas falas, nos olhares, nos corpos. As meninas combinam a espontaneidade das atrizes sem experiência com o rigor das cenas dramaticamente exigentes. O trio mais novo, encarnando a jovem infância das protagonistas, remete a algumas das melhores produções do cinema latino-americano estreladas por crianças, a exemplo de O Espírito da Colmeia (1973) e Cria Cuervos (1976). Huezo encontra sua Ana Torrent, de expressão forte, misturando vulnerabilidade e força. Seus olhos transmitem admiração, curiosidade, medo, indignação, carinho, rebeldia. São as atrizes mirins que seguram o choro ao terem o cabelo cortado contra a sua vontade e correm desesperadas sob uma nuvem espessa de veneno. O elenco adolescente sustenta o alto nível de atuação, quando a puberdade acrescenta uma nova camada à vida das personagens. As três atrizes carregam um vigor e uma excelência, em paralelo ao despojamento diante das câmeras, apenas vistos recentemente em obras preciosas como Abrir Portas e Janelas (2011).

A Noite do Fogo se encerra com tantas respostas quanto perguntas – imagens e sensações ressoam mais fortemente do que informações. Os gritos permanecem presos na garganta, os fogos queimam sem parar, e nenhuma ação é facilitada em nome do otimismo fácil. Esqueça as conclusões mágicas onde tudo se resolve no final e os personagens vivem felizes para sempre: Huezo está interessada num panorama sociológico cuja complexidade seria incompatível com a romantização. Este coming of age story possui momentos de leveza decorrentes do universo lúdico das crianças (a brincadeira nas casas abandonadas, a escola), mas abandonados à medida que crescem. Em alguns filmes, crescer significa aprender a amar a si e aos outros. Aqui, crescer implica em compreender a perversidade do sistema e a resistência das minorias. Nenhum personagem condensa a maldade, a exemplo dos vilões de fábulas infantis. A diretora conquista a proeza de realizar uma obra sobre crianças, vista pelos olhos delas, munida de uma reflexão adulta, para adultos. Somos levados a nos confrontar aos nossos fantasmas da infância, associando-os aos monstros papões do mundo adulto. “Às vezes a percepção do que vemos não é real”, explica o gentil professor, um dos poucos elos de afeto em espaço público. O filme questiona a diferença entre essência e aparência, entre o real e sua representação. Assim, fornece um cinema ao mesmo tempo verossímil e surreal, algo possível quando a realidade se aproxima do absurdo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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