Crítica


6

Leitores


4 votos 7

Onde Assistir

Sinopse

Alice e Neil são dois irmãos bilionários passando as férias em Acapulco com os filhos dela. No entanto, eles recebem a ligação de que a mãe, dona dos negócios familiares, morreu. Alice entra em desespero e faz as malas para retornar à Inglaterra. Neil, por sua vez, decide que não voltará ao seu país - talvez nunca mais.

Crítica

Um homem que não chora a morte da própria mãe é necessariamente uma pessoa ruim? Sem ter traumas de infância relacionados à falecida, o sujeito que ignora o funeral para se divertir na praia deve ser condenado? O drama parte deste questionamento moral tão direto quando complexo. Quando chegam as notícias trágicas, a irmã Alice (Charlotte Gainsbourg) chora, se desespera, vai de encontro aos familiares. Já Neil (Tim Roth) finge esquecer o passaporte no hotel para continuar as férias em Acapulco. Passam-se os dias, e nenhum sinal de remorso ou manifestação de dor aflige este personagem que, pelo contrário, talvez demonstre um acréscimo de leveza. Ele encontra uma bela mexicana com quem se relaciona, passa os dias tomando cerveja com os pés no mar, e chega a testemunhar um assassinato, decidindo retornar ao local do crime em seguida. Ao espectador, resta a pergunta fundamental: por quê? Se a possibilidade de algum rancor contra a matriarca é descartada, o que o levaria a tal comportamento? Seria apenas um mecanismo de defesa para negar a realidade e frear o doloroso processo de luto? Ou encontramo-nos diante de uma figura desprovida de sentimentos, próxima da psicopatia?

O diretor Michel Franco sustenta a quase integralidade de seu roteiro a partir do herói ambíguo. Com grande responsabilidade em mãos, Tim Roth se esforça em produzir um homem dotado de pulsões evidentes, porém voltado ao hedonismo. Ele demonstra afeto pela irmã e os sobrinhos, mas não a ponto de viajar com eles. Aparenta compreender a situação delicada, sem se demover da prioridade de descansar. É difícil enxergar em Neil um vilão insensato, ou desculpá-lo por alguma dor interna, porque jamais acessamos seus sentimentos. O cineasta oferece a incômoda jornada onde se acompanha cada passo deste indivíduo, em tempo real, sem desvendar seus sentimentos e objetivos. Assim, a exterioridade do protagonista está clara até demais: a imagem revela cada passo do sujeito de meia-idade, descartando a possibilidade de algum plano secreto por trás da estadia. No entanto, suas ações se tornam incapazes de esclarecer o posicionamento adotado. Como o espectador deve se portar face a este herói (ou seria anti-herói)? O roteiro desenvolve um jogo amargo, evitando explicar motivos que poderia ter esclarecido desde o início, se quisesse. A manipulação do público por meio da linguagem constitui a matéria-prima fundamental do projeto.

Em paralelo, Ao Cair do Sol (2021) evita julgar o viajante através da estética. Nada de luzes escurecidas sugerindo alguma perversidade oculta, nem um teor pop e fragmentado para propor o alívio ou diversão diante da morte. Há poucos símbolos em termos de enquadramento, luz e montagem para facilitar o acesso à psique. A fotografia mantém um registro banal de férias com o sol forte, os barulhos típicos da diversão familiar sobre a areia, os vendedores ambulantes. Caso Neil esteja esperando por algo, não o demonstra. O homem se converte num corpo presente, esvaziado de planos para o futuro. Ele se descola da sociedade, da vida afetiva, da família, vivendo para si próprio - o que jamais constitui uma forma de compensação. Mesmo as cores, os ritmos e as falas reproduzem um naturalismo imperturbável. O projeto prefere seguir o turista hermético, apostando na relação de pistas e adivinhações, e defendendo a possibilidade de que as motivações do “crime" moral (o desprezo pela morte da mãe) jamais se esclareçam. Neil seria, neste caso, um personagem cuja existência se faz apesar do público, caso em que cinema assume a postura de quem não precisa explicar nada a seu interlocutor.

Ora, chegada a conclusão, o drama fornece enfim alguns motivos plausíveis para justificar o comportamento do britânico. Elas serão acessórias, pois implausíveis com elementos desenvolvidos até então, aparecendo apenas para surpreender o espectador e fornecer ao viajante alguma forma de ligação com o real. Na reta final, ele terá motivos concretos para permanecer em Acapulco. Acima de tudo, a revelação solicita nosso reposicionamento: de repente, a figura apática se converte num sujeito vitimizado. Podemos mudar de avaliação por completo a respeito de uma figura que nos causava estranheza? Passar a desgostar de quem gostávamos (como a Grace de Dogville, 2003, revelando sua perversidade no último ato) ou, inversamente neste caso, encontrar afeto por aquele que nos incomodava? Franco compra o vaidoso desafio cinematográfico de testar a adesão ao público: até que ponto este repensará seus valores e julgamentos caso sejam despejados novos elementos na trama? Até quando seguirá a condução da mise en scène, ou desconfiará da ficção e de seus próprios olhos?

Por fim, a obra interessa mais pelo conceito do que pela execução. O protagonista opaco, provocador em sua indefinição, rompe com a expectativa de um filme desenvolvido para o prazer e a satisfação do público. Ele se transforma num estranho presente para o ator, e também para seus colegas de cena, de trajetória convencional. Talvez por isso algumas interações com Charlotte Gainsbourg, na segunda metade, soem desajustadas: os irmãos habitam narrativas diferentes. Entretanto, retirando o deleite autoral e metalinguístico de tensionar o storytelling, resta uma experiência pouco imersiva do ponto de vista emocional. Caso as peças fossem organizadas de maneira linear (a revelação fundamental a princípio, então a descoberta do falecimento, e assim por diante), o espectador se encontraria diante de um melodrama banal, movido por personagens estereotipados e o sentimento de autopiedade típico dos white people problems. Imagine assistir a um corte de Uma Linda Mulher (1990), descobrindo apenas no final que se tratava de uma prostituta, ou a Trainspotting: Sem Limites (1996), numa versão onde se oculta o motivo pelo qual aqueles jovens são tão agitados. Esta seria uma experiência curiosa, sem dúvida, o que se difere de uma experiência cinematográfica marcante ou potente.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *