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Sinopse

Pela primeira vez, o cineasta Karim Aïnouz cruza o Mediterrâneo rumo a Argélia. Em busca de uma conexão com a terra natal de seu pai, ele é acompanhado pelas memórias da sua mãe, Iracema.

Crítica

Marinheiro das Montanhas (2021) é um filme de inesperada humildade e discrição. Viajando pela primeira vez à Argélia, terra de seu pai, o diretor cearense Karim Aïnouz efetua uma reunião familiar simbólica: ele prefere se dirigir à mãe falecida através de cartas, ao invés do pai vivo que se prontificou a acompanhá-lo, mas teve a proposta rejeitada. A evidente importância do tema para o autor poderia conduzir a gestos de romantização pelas figuras mencionadas. Pelo contrário, ele apresenta um retrato analítico, cotidiano, avesso à idealização. Em seu diário de viagem, narra em tom corriqueiro, como numa conversa entre amigos, os quartos onde se hospeda, a torneira que não para de pingar, a noite em que se perde pelas ruas de Argel, a poética senhora idosa admirando as montanhas, de costas à imagem. A postura de turista deslumbrado, esperada para um viajante em sua primeira passagem pelo país, se substitui à visita íntima, melancólica, de um transeunte procurando por algo invisível, profundo - uma sensação de pertencimento e compreensão de si próprio. Na posição de personagem, Aïnouz remete ao fascinante Sandor Krasna, viajante fictício de Chris Marker para quem, “após viajar o mundo inteiro, apenas a banalidade importa”. 

Assim, o projeto evita explorar Argel por sua geografia, pelos museus e centros históricos. O cineasta procura se identificar com o rosto das crianças a caminho da escola, os homens nos bares, as mulheres pelas vielas. O diretor-narrador-protagonista deseja e não deseja ser visto: ele aprecia a curiosidade com que é recebido pelos afetuosos habitantes da Cabília, porém se incomoda com a insistência das perguntas a respeito de sua origem e objetivos naquela terra. O espectador, na posição de cúmplice e companheiro de viagem, presencia ao vivo este turbilhão de sensações incorporadas ao corte final. “Talvez eu faça algo com as imagens”, explica timidamente o autor aos passantes que lhe questionam o destino das gravações. A câmera registrando bairros comuns e comércios triviais se encarrega de representar, em si, a posição de estrangeiro - ninguém se incomoda com os instrumentos de gravação no gigantesco monumento aos mortos, por exemplo. A atenção conferida aos cidadãos anônimos desperta desconfiança e fascinação por parte dos idosos, adultos e crianças que se imaginam projetados na tela da televisão. Por extensão, este relacionamento de pouca intimidade com o audiovisual permite compreender que a região não é muito visitada por câmeras, e que o cinema constitui passatempo distante daqueles indivíduos.

A montagem de Ricardo Saraiva e Alice Dalgalarrondo proporciona um espetáculo à parte, e o elemento de maior empolgação neste projeto. Eles rompem com a expectativa de linearidade, de contemplação, para mergulhar Karim Aïnouz num maremoto de estímulos diversos, incompreendidos e incompreensíveis. A textura digital caseira se combinam com o forte granulado da película antiga; acelerações convivem com frames congeladas dos adolescentes na praça; a autoexposição do protagonista pós-banho se articula com as paisagens montanhosas de suas casas incrustadas a perder de vista. Não há hierarquia de imagens por categorias de beleza, importância, gravidade. A canção Moon River convive com o pop eletrônico, e a ditadura militar brasileira se articula com o crescente conservadorismo nos países magrebinos. As percepções da mãe brasileira e do pai árabe se fundem numa proposta que abraça emoções confusas, ao invés de tentar decifrá-las ao espectador. É lindo encontrar um filme que se exponha com tamanha franqueza ao público, em seus limites físicos ou psicológicos - vide a rejeição de uma proposta de dormir na casa dos moradores. O caráter sincero deriva desta confissão íntima, de igual para igual, entre o artista, a mãe e o espectador.

O percurso se torna mais acessível pela abertura à leveza: o autor ri com seus personagens, ironiza com carinho o tio-avô que apresenta cada planta frutífera do grande pomar, brinca com os adolescentes tentando se comunicar em espanhol, ou os três amigos explorando com malícia sua autoimagem numa captação internacional. A abertura à deambulação representa um importante gesto político, humano e cinematográfico: o discurso substitui versões oficiais e a sucessão de fatos consagrados ao favorecer a percepção de que nações são feitas por aqueles que as ocupam, ao invés de seus questionáveis governantes. O longa-metragem oferece o complemento simétrico de Nardjès A. (2020), documentário anterior do cineasta, que se concentrava na política argelina enquanto transparecia a vida pessoal dos manifestantes. Aqui, é a política que escapa pelas frestas da vida pessoal, explicitando os laços indissociáveis entre o público e privado, o interesse individual e nacional. “Faz umas imagens bonitas da minha Cabília”, pede uma senhora idosa ao abrir a porta de casa e descobrir o diretor. Este é um dos momentos mais comoventes por supor que a mulher desconheça o destino das gravações, ou as intenções do autor, mas se preocupe, em primeiro lugar, com a responsabilidade ética do registro, seja ele qual for. “Honre o mundo tal qual o conheço”, parece pedir. Gigantesca responsabilidade, que o documentário cumpre por não cair na armadilha do espetáculo.

Marinheiro das Montanhas trata de unir a lembrança da mãe à figura do pai, o sentimento brasileiro à vivência africana do autor descrito muitas vezes como um “jornalista francês”. Ele sobrepõe gerações, gêneros e visões da sociedade distintos - a montagem faz questão de mencionar o rapaz saudoso da época que nunca viveu, quando os franceses ocupavam a Argélia. O cineasta foge à armadilha de tentar reparar profundas cicatrizes históricas pelo afeto, mas acredita na aproximação entre indivíduos num grau anterior à sua identificação ideológica e geográfica. Assim, propõe um filme de encontros corriqueiros, minúsculas obras do acaso que talvez permaneçam na memória justamente por sua imprevisibilidade. Em tempos polarizados, de incompreensão das dores alheias, o encontro com um vilarejo repleto de moradores de sobrenome Aïnouz, que se deixam filmar, envergonhados, e depois prometem uma cesta de doces para a “próxima vez que vier”, constitui uma pérola de encontro com o outro e consigo mesmo. Karim Aïnouz, que sempre precisou soletrar seu nome no Brasil, descobre no povoado montanhoso um homem com seu exato nome e idade, que exibe o RG para comprovar a coincidência. Os diferentes mundos se unem por esta identificação tão simples, profunda e humana.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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