Crítica


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Sinopse

Nas montanhas do Curdistão existe a vila de Zavala, habitada por ciganos. Eles acreditam ser visitados pelo demônio uma vez por ano, e chamam a polícia quando percebem um novo caso de possessão. Um exorcista realiza um ato de captura do ser maligno, no entanto um sargento cético decide prendê-lo por charlatanismo. Quem estaria correto, neste caso? A fé ou a razão?

Crítica

“Socorro! Nós fomos possuídos! Um demônio tomou conta de Zalava!”, grita um homem em frente à delegacia. A pequena comunidade de ciganos no Curdistão está em desespero, correndo de um lado para o outro, temendo a invasão perigosa da figura invisível. Eles possuem crenças muito específicas a este respeito: 1. A força do mal os visita uma vez por ano; 2. Ela deixa estranhas marcas esbranquiçadas no rosto das pessoas; 3. Ela tem medo de objetos metálicos; 4. Caso possua alguém, pode ser vencida com um tiro nos membros inferiores, deixando o indivíduo possuído “sangrar" o demônio; 5. Sua presença incorpórea pode ser presa num pote de vidro; 6. Caso o objeto contenha a criatura em seu interior, ficará intacto após ser jogado ao alto e colidir com o chão. Nunca se descobrem os motivos que levam a estas regras particulares, ou quais indícios os moradores teriam de sua veracidade. No entanto, decorrem da força da fé e de um potente efeito de grupo: a partir do instante em que um adulto aponta o dedo e grita “Ela está possuída!”, os companheiros tendem a acreditar nele, pegando em armas para atirar na vítima. O real, para estes cidadãos curdos, encontra-se naquilo que não se vê.

Em oposição a este sistema rígido de crenças, o cético sargento Massoud (Navid Pourfaraj) enxerga a performance de um exorcista e decide prendê-lo por charlatanismo. Contrariando o fato que “a lei é vaga nessas coisas”, conforme lembra um colega da polícia, decide por conta própria que o medo é perigoso, e as crendices devem ser banidas de maneira dura e exemplar. Enquanto os moradores de Zalava forjaram sua visão de mundo através de diversas gerações, em estrutura oral; o protagonista fortaleceu sua descrença por um trauma infantil - tendo nascido com seis dedos em uma mão, foi considerado maligno na infância. Está estabelecida a oposição do longa-metragem entre fé e ciência, ou ainda entre valores individuais e a moral coletiva. O tema da possessão demoníaca é sensível demais às duas esferas da discussão, instigando suas principais fobias e raivas. Por isso, Arsalan Amiri, cineasta iraniano curdo, se apropria da fábula para discutir o respeito à alteridade e a discriminação baseada em valores religiosos. Cada acontecimento nesta trama repleta de reviravoltas receberá uma interpretação mística e outra científica: a mulher falecida no parto estaria possuída, ou apenas sofreu com uma complicação médica; o demônio visa os habitantes por se tratar de uma minoria perseguida, ou sua lenda seria mera ferramenta para despertar medo nas pessoas ao redor e permitir que os adultos pratiquem a caça ilegal sem intervenção da polícia.

Zalava (2021) constitui um fascinante filme de terror por buscar sua fonte de conflitos no imaginário do medo, ao invés da concretização deste em imagens. O pote de vidro transparente será bem utilizado neste sentido. “É apenas um pote de picles!”, exclama o sargento irritado, mas para o vilarejo, trata-se de um objeto perigosíssimo. Após uma tentativa de abri-lo para “provar" a inexistência da força maligna em seu interior, a médica local (Hoda Zeinolabedin) utiliza um bom argumento em contrário: “Se eles se sentem mais seguros com a tampa fechada, então por que faz tanta questão de abri-la? A função da polícia não seria trazer a paz aos cidadãos?”. Este filme de terror busca na cultura local uma forma de romper com o imaginário hollywoodiano do gênero: trata-se de uma obra asfixiante e tensa elaborada quase inteiramente de dia, a céu aberto. O tradicional gelo seco das paisagens noturnas no terror industrial se substitui por uma nuvem de terra e areia nas planícies secas. O diretor trabalha com eficiência impressionante as trucagens analógicas, que dispensam efeitos especiais: a janela aberta violentamente, sugerindo a presença do vento ou a fuga do espírito; o comportamento irritado do gato junto do jarro; os sangramentos nasais em situações de tensão.

Em sucintos 90 minutos, o roteiro apresenta uma quantidade expressiva de guinadas ágeis e orgânicas, tratando de atenuar o possível maniqueísmo: Massoud passa a questionar sua noção inflexível da verdade, enquanto os representantes de Zalava apresentam graus variados de adesão à tese da possessão. Dentro da polícia, há aqueles que acreditam sem questionamento na chegada anual do diabo, e outros que preferem tirar proveito político da fé. Os acontecimentos da região montanhosa caberão, até o final, ao julgamento do espectador, visto que o autor jamais tomará partido para um lado ou outro, embora ofereça indícios suficientes para sustentar as visões de ambos. Em oposição à obrigatoriedade de uma "revelação final”, tão desgastada no cinema norte-americano e empobrecedora na redução a uma leitura única, o longa-metragem iraniano solicita um espectador ativo durante a integralidade da sessão, razão pela qual se torna tão fácil produzir um senso de identificação com o dilema. Amiri dispõe de um pesado arsenal de estímulos visuais e sonoros, que vão do vento à potente trilha sonora, passando pela sugestão de conflitos extra-quadro, ruídos distantes, sombras, manipulação da profundidade de campo e dos planos subjetivos. Ele demonstra o domínio amplo das ferramentas de linguagem capazes de induzir a crença do espectador - afinal, toda direção constitui uma forma de manipulação dos sentidos e percepções do público.

Este aspecto conduz a outro tema relevante, ao qual Zalava faz menção direta: a associação entre fé religiosa e fé cênica, ou seja, a crença na ficção por parte do espectador. Que diferença haveria entre os habitantes que enxergam o mal num pote transparente, e o espectador que acredita na força do mal devido a uma janela que se abre sozinha, violentamente? A suspensão da descrença vale para ambos - no caso dos habitantes, enquanto moral para a vida inteira, e para o público, ao longo da sessão em que concorda acreditar naqueles estímulos e temer por personagens fictícios. Que direito teríamos de zombar ou desprezar a crença alheia, se estabelecemos nosso próprio pacto artístico de imersão na fantasia? O belíssimo filme, muito bem atuado, montado e fotografado, atinge picos ainda mais altos na conclusão. Para o autor, nenhum lado precisa convencer o outro, apenas semear dúvidas dentro de um sistema inalterável de valores. Em outras palavras, o progresso viria do senso crítico, ao invés da conversão a uma ou outra causa. O desfecho da médica curda, figura que efetua a ligação entre a ciência e a crença no demônio, demonstra o pessimismo do cineasta quanto à possibilidade de "desencantamento do mundo". Ele prefere acreditar que a evolução virá do autoquestionamento e do contato com diferenças, valorizando o conhecimento e a diversidade cultural enquanto formas de riqueza. Através deste pequeno conto, oferece uma obra política complexa e pertinente à contemporaneidade.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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