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Sinopse

Após cometer uma falta grave dentro da polícia, Daniel é afastado do cargo e pode sofrer uma punição. Enquanto isso, desenvolve um relacionamento virtual com Sara, garota baiana que nunca encontrou pessoalmente. Quando ela para de responder às suas mensagens, Daniel decide fazer uma viagem de Curitiba ao interior da Bahia para descobrir o que aconteceu com sua amada.

Crítica

Tudo ao redor de Daniel (Antônio Saboia) o impulsiona para fora de si e do local onde se encontra. O policial foi repreendido por um treinamento excessivamente violento, sendo afastado pelos superiores e transformado em alvo de críticas na mídia. Um julgamento disciplinar o aguarda, apontando a uma provável punição exemplar. A saúde do pai idoso se agrava, exigindo cuidados maiores. Além disso, a namorada distante, que ele nunca conheceu pessoalmente, para de mandar mensagens sem motivo aparente. Sem amor, trabalho, nem uma sólida estrutura familiar, ele faz as malas e sai de casa certa manhã, de Curitiba ao interior da Bahia, direcionando a rota para sua amada desaparecida (mas não morta, espera-se). Ele desconhece a localização precisa de Sara, e parte sem data de retorno. A fuga constitui um objetivo em si mesmo: Daniel procura se encontrar num universo diferente do seu. Para justificar a decisão deste jovem, o roteiro dedica generosos 30 minutos de introdução e descrição de sua rotina. Apenas passado este segmento, aparecem na tela o título e os créditos. A narrativa se inicia, de fato, com o chamado à aventura.

Deserto Particular (2021) converte esta jornada num road movie melancólico, marcado por impressionante tratamento estético. O diretor Aly Muritiba apresenta seu filme mais bonito até hoje, não no sentido de uma beleza vaidosa, que chame atenção a ela mesma e às habilidades de seu criador, e sim de escolhas estéticas coesas e expressivas, calibradas às necessidades da trama. As luzes contrastadas na casa do protagonista, os neons nas casas noturnas baianas e os tons crepusculares em barcos e represas desenham um teor onírico, de uma letargia sensual. Em se tratando de uma história de violências - policial, de gênero, sexual -, a obra surpreende pelo caráter carinhoso, propenso à contemplação, porém sem esticar a duração dos planos pelo simples prazer de fazê-lo. A montagem desenha um ritmo impecável, tão fluido quanto dinâmico, ao longo de duas horas de duração. Com exceção de uma única cena, com Flávio Bauraqui, repleta de estranhos cortes e escolhas de enquadramento, o restante transparece impecável trabalho de enquadramentos, profundidade de campo, luz natural e artificial. A articulação dos sons, valorizando tanto os ruídos locais quanto o silêncio e a trilha sonora (destaque para a balada Total Eclipse of the Heart), impressiona pelo rigor aliado à naturalidade.

O trabalho de atuações acompanha o alto nível da produção. Muitos atores aproveitariam um personagem como Daniel (policial bruto, musculoso, homofóbico, filho de militares) para efetuar uma composição exagerada, truculenta. Ora, Saboia opta pelo caminho da introversão, no qual o ímpeto agressivo se mistura à dose generosa de melancolia. Aos poucos, ele abandona os elementos de potência e masculinidade: a farda, o revólver, o carro deixado de lado, o rígido gesso no braço. O ator evita o maniqueísmo para compor um policial despido, nos sentidos literal e figurado, procurando acolhimento ao invés de redenção. Se habitasse uma produção hollywoodiana, o herói terminaria a narrativa incorporado de volta ao batalhão, recebendo alguma condecoração valiosa. Já o drama brasileiro, em chave menor, promove uma revolução interna, compartilhada apenas com o espectador. As pessoas ao redor - o pai, a irmã, os amigos do trabalho - jamais conhecerão sua revolução interna. Frente a ele, Pedro Fasanaro combina o corpo esguio e a voz doce com a capacidade de resistência que nunca se confunde com martírio. Robson conhece suas limitações na sociedade conservadora, mas explora as brechas possíveis. Trata-se de duas figuras falhas, solitárias e carentes, que se atraem graças às diferenças, ao invés das semelhanças. Eles se agarram porque, sozinhos, naufragariam.

Tamanho cuidado com as imagens, o ritmo e os atores se confronta à curiosa aventura LGBTQIA+ que se esforça ao máximo para não ser reconhecida enquanto tal. Embora metade dos personagens sejam gays, lésbicas e travestis, a divulgação oculta esse fator essencial (que nem chega a constituir uma grande revelação na trama), ao passo que a mise en scène dispensa as ferramentas específicas da estética queer. Em 2020, Vento Seco também se voltou ao Brasil profundo para imaginar a aproximação afetiva e sexual entre homens alheios às normas sociais. No entanto, Daniel Nolasco abraçava o imaginário fetichista, multicolorido, voltado à representação particular do desejo entre dois homens. Aqui, a questão de afetividades homo e trans se tornam singelas ao ponto do mutismo: os personagens evitam termos como gay, travesti e transexual (“O que eu sou?”, pergunta Sara/Robson ao atônito Daniel, que se cala), perambulando por um mundo de tristezas mais próximo dos encontros de Paris, Texas (1984) do que de uma elaboração orgulhosamente subversiva. Trata-se de uma narrativa sobre indivíduos LGBTQIA+ onde suas subjetividades não permeiam a estética, nem dominam o ponto de vista - o protagonismo se atém à figura do homem branco e cisgênero, humanizado após o contato com as diferenças. As duas cenas de sexo refletem este comedimento: quando se relaciona com uma mulher, a imagem fica à vontade para flagrar corpos e a nudez. Chegada a vez do sexo entre dois homens, a porta se fecha em frente à câmera, expulsando o público. 

Outro elemento incomoda, em termos de verossimilhança: o fato de o protagonista jamais desconfiar que sua amada não fosse uma mulher cisgênero. Caso ele sempre soubesse disso, mas recalcasse esta evidência, o conflito seria justificado pela homo-transfobia internalizada. Ora, a surpresa com a genitalidade de Sara soa improvável ao homem que conversava com ela e trocava fotos nuas durante longos meses antes do encontro presencial. Este poderia ser um detalhe, entretanto, o conflito possui um papel importantíssimo no longa-metragem. Deserto Particular oferece às figuras marginais um olhar hétero e cis, pleno de carinho e respeito - vide a a irmã lésbica e o amigo gay, interpretado brilhantemente por Thomás Aquino. Talvez Muritiba minimize o impacto da alteridade na estética para torná-lo acessível ao público amplo, que terá contato com a pluralidade sexual e de gênero sem buscá-la deliberadamente, encontrando apenas uma bela história de amor - algo que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014) conseguiu fazer em sua época, quebrando a barreira da obra voltada a um nicho. De qualquer modo, o autor permite que a jornada física permeie a jornada emocional, num fluxo vertiginoso de imagens e sons. A ambientação intoxicante, no melhor sentido possível, vale a experiência de um filme que se abre ao mundo lá fora, sem tentar falar em seu nome.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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