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Sinopse

Lisa e Mara moram juntas há muito tempo, dividindo apartamento. Quando Lisa decide se mudar para um espaço sozinha, o mundo de Mara começa a ruir. Conforme a amiga retira móveis, roupas e objetos, aquela que fica se sentirá mais solitária do que nunca.

Crítica

Existe um único conflito explícito ao longo de A Garota e a Aranha (2021): a partida de Lisa (Liliane Amuat), que deixa o apartamento onde morava com Mara (Henriette Confurius) para viver em um novo local. O longa-metragem inteiro se concentra no intervalo de dois ou três dias quando os objetos são encaixotados, os móveis, desmontados, e pessoas entram e saem dos dois apartamentos (o novo e o antigo) para efetuar a mudança. Ao invés de priorizar aquela que sai, o ponto de vista pertence àquela que fica. Perambulando pelos corredores em silêncio, espremendo-se para a passagem de mesas, cadeiras e escadas, Mara demonstra aos poucos seu rico universo de sentimentos. Ela expressa as impressões contraditórias através de pequenos gestos, metáforas e instantes de respiro próximos do realismo fantástico. A partir de uma premissa concreta até demais, os diretores Ramon Zürcher e Silvan Zürcher inserem magia no cotidiano e abordam uma infinidade de relações de amizade, amor, ciúme, inveja e desejo sexual entre Lisa, Mara, os vizinhos, os amigos, os operários da obra em frente ao prédio e a vendedora de uma loja do outro lado da rua. Eles investem numa ciranda próxima da Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade: "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém".

A riqueza destas interações se potencializa graças ao trabalho impecável de direção de atores, de fotografia e de arte. Compreendemos o grau de intimidade e as sensações através de minúsculos símbolos: a paixão de Mara por Lisa quando elas compartilham uma aranha (passada de uma mão à outra); o relacionamento antigo da amiga Kerstin (Dagna Litzenberger-Vinet) com o vizinho Markus (Ivan Georgiev) pelos olhares e pelo desconforto quando se encontram no mesmo cômodo, a atração entre a mãe Astrid (Ursina Lardi) e o profissional Jurek (André Hennicke) transmitida por discretos sorrisos quando se cruzam. Para não levarem os protagonistas às ruas, os autores trazem uma parcela significativa da sociedade, de diferentes gêneros e classes sociais, ao interior dos apartamentos em construção. Enquanto isso, permite que os namoros e flertes se sucedam vertiginosamente, ao limite do absurdo: o jovem Jan (Flurin Giger) se interessa por Mara, mas enquanto é ignorado, dorme com Kerstin e Nora (Lea Draeger). Existe uma complexa valsa de corpos nestes pequenos espaços, sem qualquer forma de julgamento moral a respeito das atitudes. Os encontros se configuram e reconfiguram de maneira quase imperceptível, enquanto armários e caixas passam pelo corredor. Os diretores associam transformações físicas (dos espaços) àquelas afetivas (dos personagens).

Para isso, utilizam como principal metáfora as relações com animais. A aranha mencionada no título possui um papel fundamental por representar a figura que entra e sai dos quartos quando quiser, sem avisar, podendo oferecer perigo ou apenas ficar parada onde se encontra. Ela converge com Mara em mais de uma oportunidade. Há gatos perdidos pelo prédio, traduzindo valores diferentes para cada um (uma chance de afeto à senhora solitária, um problema para o rapaz encarregado de alimentar o bicho), além de cachorros roubando objetos e atrapalhando os deslocamentos, moscas entrando pelas janelas e pássaros mencionados na fábula de uma jaqueta de infância. Longe de constituírem mero aceno à natureza ou à inocência, os animais servem para representar a perversidade da protagonista em relação à amiga/amante em vias de separação. Café quente é despejado sobre as costas do cachorro, em gesto defendido de maneira cínica (“Cachorros também têm sede”), já moscas são esmagadas com a mão, e utilizadas para dispensar um flerte indesejado (“Eu não gosto de você, mas talvez essa mosca goste”. Esmaga-se o inseto. “Pronto, agora ninguém gosta de você”). Os autores desenvolvem um sistema inesperado para evocar o turbilhão de emoções.

Isso se estende ao uso de câmera, iluminação e montagem. A permanência em corredores e quartos esvaziados constituiria um desafio à maioria das equipes de fotografia, no entanto, A Garota e a Aranha faz deste empecilho um desafio voluntário. As portas nunca se fecham por completo, para que mulheres e homens possam se invadir: a amiga permanece dentro do banheiro enquanto a mãe de sua colega faz xixi; a outra dorme nua e espera pela entrada de um rapaz; os moradores dos apartamentos acima e abaixo adentram as propriedades alheias quando o desejam. Os figurinos azul-acinzentados se projetam sobre paredes azul-acinzentadas, provocando um estranho efeito de torpor e fusão com os cômodos, enquanto a presença de três, quatro ou cinco pessoas por vez num enquadramento permite aos criadores brincar com o jogo de quadros-dentro-do-quadro, com as batentes e molduras de janelas desenhando divisões internas na imagem de modo orgânico. Em nenhum momento estas escolhas soam posadas, artificiais: os atores se deslocam e param nos terços exatos da imagem como quem o faz por desleixo, irrefletidamente. As atuações possuem um nível de coerência impressionante: nenhum ator se sobressai aos demais, positiva ou negativamente, dentro de um sistema levemente apartado do real, porém ainda verossímil.

O longa-metragem pode ser compreendido enquanto estudo da fotogenia, do poder dos rostos e do uso expressivo do close-up. Ao invés de se focar apenas naquele que fala, a imagem demonstra prazer especial de flagrar as figuras em silêncio, quando sofrem caladas ou expressam o desejo pelo outro. A expansão do procedimento aos anônimos nas ruas (o operário, a vendedora completando o estoque) sugere a fantasia de uma cidade de afetos, onde as pessoas se olham, se compreendem tacitamente e demonstram solidariedade por um mínimo aceno de canto de boca. Há empatia pelos dilemas alheios, embora os fatos sejam inalteráveis: Lisa terminará a trama em novo espaço, longe de Mara. O filme transborda de metáforas e instantes poéticos raros: a planta baixa do apartamento, progressivamente ocupada por desenhos infantis, amassada e coberta de vinho; as descrições de sonhos e restos diurnos de seus personagens, revelados de modo cândido a desconhecidos; a analogia entre o buraco no copo de isopor, o furo do piercing e as vaginas. Os irmãos Zürcher fundem indivíduos e animais, espaços e objetos, respeitando o mutismo em período de crise e fazendo com que os seres inanimados ou irracionais expressem sentimentos. Eles oferecem uma obra de sensibilidade única, marcada pelo uso excepcional da linguagem cinematográfica e a investigação profunda sobre as pulsões humanas.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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