Crítica
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Sinopse
Conceição é uma advogada negra; Presto é um artista e grafiteiro branco. O casal decide se mudar para um apartamento no Leblon, bairro privilegiado do Rio, e predominantemente branco. Para fechar o negócio, basta ter a assinatura do irmão de Presto como fiador. No entanto, os dois descobrem que as barreiras sociais são mais fortes do que esperavam.
Crítica
Mundo Novo (2021) pode ser compreendido a partir de uma configuração inicial: aquela de obras sobre o racismo filmadas em preto e branco. Diversos motivos podem levar um artista a optar pelo preto e branco: a valorização das formas, geografias e contornos em detrimento das cores; a vontade de estabelecer um recorte atemporal, ou de temporalidade imprecisa; as vantagens de trabalhar com um decalque imediato do real, seja por estranhamento, seja por distanciamento (afinal, não enxergamos o mundo em preto e branco); a vontade de chamar atenção à direção e ao gesto artístico, sublinhando o dispositivo. No caso dos projetos refletindo o racismo sistêmico, a dessaturação provoca outro efeito: ela torna os negros ainda mais negros, os brancos ainda mais brancos, explicitando a diferença, o confronto, a oposição. Identidade (2021), Time (2020) e A Outra História Americana (1998) adotam um princípio semelhante. Nestes, casos, a ausência de cores constitui um preceito tão potente quanto óbvio — ele deflagra o favorecimento do embate, ao invés da conciliação. Não por acaso, os títulos mencionados se encaminham a conclusões amargas ou trágicas, onde dilema resta sem solução fácil (ou sem solução nenhuma). Estes autores preferem lançar boas perguntas a oferecer respostas.
No filme brasileiro, o preto e branco é acompanhado de outras determinações radicais — sinais de um posicionamento firme, longe da tentativa de agradar o espectador a qualquer preço. O longa-metragem, movido por conversas, opta por um tratamento de som limpíssimo, no qual as vozes estão tão nítidas e dissociadas de ruídos que os diálogos soam dublados posteriormente, em estúdio. O conflito central (um casal formado por um homem branco e uma mulher negra deseja morar no bairro elitista do Leblon) se desenvolve praticamente em cenário único: a casa burguesa e confortável de Charles, irmão do protagonista, e seu marido. Este local deflagra o ponto de vista da direção — ambos os anfitriões são progressistas, de esquerda, mas ávidos em manter seus privilégios e vigiar suas posses quando as classes desfavorecidas batem à porta. Teria sido fácil atacar a direita bolsonarista, ou a classe empresária raivosa. O diretor Álvaro Campos embarca num percurso de maior complexidade e interesse, voltando-se à hipocrisia dos setores ditos liberais. Durante uma tarde e uma noite, a família branca se confronta às pessoas negras em diálogos afiadíssimos e, ao mesmo tempo, sutis. Esqueça o racismo odioso das figuras orgulhosamente preconceituosas: o desprezo escapa em atos falhos, em falas condescendentes. “É diferente?”, pergunta-se a Presto a respeito do sexo com uma mulher negra. “Não quero desrespeitar as comunidades”, Carlos dispara, olhando para Conceição (Tati Villela), que responde: “Eu nunca morei em uma comunidade”.
O longa-metragem ostenta qualidades difíceis de atingir em se tratando de uma produção filmada em poucos dias, durante a pandemia, com orçamento reduzidíssimo. Primeiro, existe um refinamento de fotografia e montagem inconfundível com a estética da urgência: há cuidado precioso com a profundidade de campo, o teor contemplativo das imagens e o ritmo geral, superior àquele de obras realizadas com imenso aparato de produção. Segundo, o diretor impede que o roteiro se encaminhe a uma gradação espetacular, ou seja, os problemas não aumentam rumo a uma explosão de brigas e discussões. Na conclusão, as raivas e os gritos permanecem entalados na garganta — não há válvulas de escape fáceis visando o expurgo do espectador. Apesar da predisposição à luta entre opostos, permitem-se valiosas ambiguidades no posicionamento frouxo de Presto, na imposição orgulhosa de Charles, na gentileza firme de Conceição. Terceiro, os antagonistas nunca se convertem em vilões, e os heróis jamais se reduzem à posição de vítimas. A presença fundamental de Kelly, mulher negra restrita à posição de doméstica, e a chegada das irmãs de Conceição à casa atenuam os polos e dispersam os enfrentamentos numa ciranda ampla de personagens. Apesar da recusa em assinar o documento de fiador exigido pelo irmão, Charles deixa que este fique no local, e aplaude quando a visitante indesejada declama o trecho de uma peça de teatro. Há movimentos variados de agressão e recuo por parte dos jogadores-lutadores.
Em contrapartida, alguns fatores prejudicam o resultado. Nota-se a dificuldade de trabalhar a passagem do tempo pelo roteiro: Charles afirma estar prestes a entrar em importantes reuniões que jamais acontecem; Conceição e Presto insistem que “está ficando tarde”, embora a demora em pintar o mural não condiga com o procedimento de criação. O casal está ora apressado em obter a assinatura, ora flana pelo casarão sem objetivo preciso. A antipatia de Kelly poderia ser explicada em detalhes, superando a condição de ciúme; enquanto o encerramento da trama junto a Charles, dentro da casa, ao invés de acompanhar os protagonistas partindo, soa curiosa, até contraproducente. A inclusão de uma cena pós-créditos se traduz em mero capricho da edição — aquele trecho teria sua potência reforçada caso se inserisse em meio aos acontecimentos finais. Além disso, certos diálogos parecem escritos em excesso, em especial no caso de Carlos. As respostas da classe branca e dominantes são depositados em excesso sobre as costas de Charles (em excelente trabalho de Kadu Garcia, vale dizer), embora este peso pudesse ser distribuído entre outras forças. Em especial, faltam momentos de intimidade e afeto para que se acredite nos casais Conceição-Presto e Charles-Carlos: em diversos instantes, eles despertam a impressão de amigos próximos. O encontro dos heróis diante da paisagem do Rio de Janeiro, quando ele narra sua infância (“Eu aprendi tudo na rua”) resta improvável: a namorada de dois anos de relacionamento não saberia disso? Há bastante camaradagem entre eles, mas pouco carinho e paixão.
Ressalvas à parte, estes são fatores menores perto das conquistas de Álvaro Campos e equipe. O grupo oferece uma obra coesa, de discurso político evidente, driblando o maniqueísmo. Muitos diretores jovens consagram dezenas de trabalhos a dramas raciais, sem atingirem tamanho equilíbrio entre as posturas distanciada e afirmativa. A pandemia de Covid-19 é incorporada ao conjunto de maneira coesa, sendo instrumentalizada pelos personagens para justificarem a imobilidade das relações. Paira a sensação de que a sociedade se tornou estanque, e seria imprudente fazer mudanças (literais ou simbólicas) em período de crise, algo que se encaixa como uma luva no palavreado passivo-agressivo da burguesia. O cineasta capta a tensão racial e elitista enquanto fatores interligados, porém travestidos de cautela: Charles afirma ao irmão que o relacionamento com a namorada seria precipitado; e depois insiste à mulher, em separado, que o irmão se converteria num peso morto a carregar. "Mas por que o Leblon? Precisa ser o Leblon”? O incômodo central às classes dominantes se encontra no fato de os indivíduos ocuparem lugares onde não se estima que deveriam estar: uma mulher negra num bairro rico, um artista de rua em posição economicamente confortável, a esposa sustentando o lar. Claro, estas “preocupações" se disfarçam entre sorrisos, abraços, expressões bem pensadas. “Distância, por favor”, Charles pede a Conceição. Oficialmente, o motivo diz respeito ao coronavírus. Mas sabemos que se trata de muito mais do que isso.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 7 |
Alysson Oliveira | 6 |
Celso Sabadin | 6 |
Carlos Helí de Almeida | 6 |
Francisco Carbone | 6 |
MÉDIA | 4.8 |
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