Crítica


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Sinopse

Um casal aparentemente perfeito - um provocante comediante de stand-up e uma cantora de ópera de renome internacional - leva uma vida glamourosa em Los Angeles. No entanto, esta situação se transforma com a chegada da primeira filha do casal: Annette, uma garotinha com poderes excepcionais.

Crítica

Quais elementos permitem dizer que um filme é bom? Que valores ele precisa conter para se atestar sua qualidade? Esta questão fundamental aos estudos de psicologia e cognição no cinema já despertaram bons estudos. Para o teórico Laurent Jullier, os critérios populares (“um bom filme é um sucesso de bilheteria”, “um bom filme me faz rir/chorar”) seriam os menos sofisticados, por dependerem de questões meramente subjetivas ou mercadológicas. Ele estima que os critérios distintos se encontram em duas medidas: "um bom filme possui originalidade" e "um bom filme é coeso". Ora, ambas as acepções são relacionais: para se declarar a originalidade de um procedimento, precisa-se conhecer a história deste no cinema e nas outras artes narrativas. Para avaliar a coesão estética e discursiva, exige-se conhecimentos de linguagem e capacidade de interpretação. Em outras palavras, estes critérios são reservados aos espectadores com acesso à educação artística. Por isso, constituem valores que expulsam o público médio da percepção de qualidade: quando se afirma que uma obra contemplativa, de poucas ações, representa uma preciosidade, o crítico ou espectador valoriza o projeto e a si mesmo, por identificar aspectos que poucos seriam capazes de apontar. O conhecimento se torna uma luxuosa ferramenta de distinção social.

Estas considerações ajudam a pensar sobre Annette (2021), filme estranhíssimo, no melhor sentido do termo. O diretor Léos Carax se coloca em cena na introdução, anunciando o começo do espetáculo e pedindo que evite rir, chorar, peidar e respirar. “A respiração não será tolerada”. O critério de originalidade se cumpre sem dificuldade dentro dos gêneros do musical, drama, romance e fantasia. O cineasta apela ao canto de aparência amadora, especialmente de Adam Driver, porém elevado a status de uma composição bem produzida devido aos arranjos e letras. Ele oferece uma proposta de romance idealizado entre indivíduos de temperamento oposto, apenas para surpreender o espectador com guinadas radicais rumo à configuração de uma tragédia grega contemporânea. Em paralelo, desenha um drama sobre mortes e renascimentos desprovido de lágrimas - os sentimentos são representados pela magia da música, dos cenários abertamente artificiais e dos sonhos premonitórios. Os personagens se envolvem os símbolos relacionados às suas condições: a cantora de ópera (Marion Cotillard) anda às voltas com suas maçãs (envenenadas?), já o humorista de stand-up (Adam Driver) apresenta um espetáculo sobre o “macaco de Deus”, até o instante em que um macaco aparece de fato na trama. O primitivismo será fundamental à construção deste homem.

No quesito da coesão, o projeto oferece estímulos diversos, porém pertinentes ao universo fantástico derivado dos sonhos. Ao se confrontar com as outras artes - o teatro, a ópera, os fantoches -, Carax funde tradição e pós-modernidade. O ápice se encontrará na figura de um boneco de madeira flutuando acima de um gigantesco triângulo virtual; ou ainda de um fantasma cujo desenho se limita a uma mulher coberta de maquiagem. O autor retoma trucagens simples do cinema mudo, sugerindo um mundo carinhoso de ilusionismo pra temas tão graves quanto o feminicídio, a orfandade, a exploração infantil e a sede pelo poder. Assim, faz com que as linguagens se misturem: o stand-up comum se transforma em musical quando a plateia começa a cantar em resposta ao humorista; a ópera se converte em fantasia cinematográfica assim que a soprano invade uma floresta profunda além do palco; o épico se transmuta em pantomima pela sequência do barco em alto-mar. Contrariamente à pureza das artes clássicas, o diretor privilegia a rica interferência de registros. O digital encontra o analógico, assim como o sagrado se mistura ao profano.

Além destes valores, Annette possui qualidades relacionadas ao ritmo e à ambientação. Por trás de um roteiro surpreendentemente linear para os padrões do cineasta, existe uma construção atípica do espaço-tempo, favorecida tanto pelas regras do musical quanto pela abertura ao fantástico. Uma canção de amor se inicia na floresta durante o dia, continua numa motocicleta à noite, em plena autoestrada, e se encerra durante o ato sexual, quando os amantes seguem cantando na cama. A condução de uma orquestra pelo Acompanhador (Simon Helberg), em vertiginoso plano giratório, permite que o artista confesse seus tormentos à câmera enquanto conduz os artistas, para então pedir licença ao espectador e se envolver nas partes mais catárticas da canção. No clímax, um inesperado dueto entre o pai e seu bebê rompe com expectativas de musicalidade e narrativa. As cenas se metamorfoseiam internamente, ao longo do plano, quando comédia se transforma em música e bonecos se convertem em humanos. Em paralelo, teatros viram tribunais, platéias se traduzem em palco, aeroportos se transmutam em cenários móveis. Carax manipula tempos e espaços a exemplo de uma criança de criatividade fértil, pintando fora das linhas do desenho com cores diferentes do real. O filme se desenvolve como se não tivesse contas a prestar com ninguém.

Enquanto isso, os atores brincam com os registros de crença, demonstrando afeto palpável pelo bebê-boneco e morrendo diversas vezes diante de nossos olhos, apenas para se levantarem em seguida. O longa-metragem proporciona uma homenagem ao poder transformador da arte, em sua capacidade de levar a crer no impossível. Trata-se de uma ode ao storytelling, à liberdade criativa que, uma vez controlada pelas regras do sistema, perde sua possibilidade de expressão. Além disso, efetua uma ponte direta com o século XXI através do movimento #MeToo, das formas contestáveis de humor ofensivo e da mídia popularesca, focada na vida das celebridades. Carax efetua uma travessia histórica ligando a performatividade da ópera ao stand-up, passando pelo teatro clássico e o espetáculo de marionetes; partindo do musical de coreografia precisa e som pré-mixado, até os personagens cantando de fato em frente às câmeras. O projeto embute em sua gênese a evolução dos procedimentos artísticos, culminando na materialização de Annette, o bebê-boneco de aparência antiga e dons ultramodernos, misto entre bênção e maldição, entre monstro de Frankenstein e inocência infantil. O diretor dedica-se à impureza e as fronteiras entre as artes.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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