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Sinopse

Jeitoso com as palavras, Antonin é alguém cuja inteligência e elegância poderia fazê-lo ser confundido com um escritor famoso. Mas, em vez de seguir o caminho das letras, ele prefere utilizar seu talento para se safar de enrascadas.

Crítica

Como fazer um filme durante a pandemia de Covid-19, refletindo sobre ela, sem apostar nas histórias de pessoas presas em suas casas, conversando através da tela do computador e do celular? O canadense Denis Côté encontrou uma solução tragicômica ao dilema criativo. Em Higiene Social (2021), ele leva um número limitado de atores a uma gigantesca planície aberta, com natureza a perder de vista. Os personagens se mantém distanciados uns dos outros – mais do que o recomendado 1,5 metro de distância. Embora encenem histórias de amor, brigas e provocações, eles jamais se encostam, nem se aproximam uns dos outros. A disposição tende ao absurdo: os atores são obrigados a gritarem para serem escutados (ainda mais do que fariam sobre o palco do teatro), travam duelos onde ninguém se fere e oferecem rosas que a donzela não vai buscar. O distanciamento social em relação a pessoas queridas constitui um gesto antinatural, sintoma dos tempos igualmente absurdos em que vivemos. A própria existência deste filme resulta num belo exercício de humor e reflexão cinematográfica dos anos 2020-2021.

No entanto, o estranhamento vai além. O diretor elabora uma comédia de costumes, parodiando as peças farsescas de Molière. Antonin (Maxim Gaudette), um ladrão mulherengo, se confronta em cada cena com uma mulher diferente: a irmã, a esposa, a pretensa amante, a fiscal dos impostos e uma das vítimas de seus roubos. Ora, os tempos estão alegremente misturados: a amada Cassiopée (Eve Duranceau) se veste com figurinos típicos do século XVII, ao passo que a fiscal Rose (Kathleen Fortin) porta um terninho cor de rosa moderno. A esposa de Antonin, Églantine (Evelyne Rompré), usa trapos aparentemente retirados de uma encenação de Os Miseráveis, já a jovem Aurore (Eleonore Loiselle), furtada pelo ladrão, corresponde à figura andrógina e punk pós-1980. Os personagens possuem posturas e declamações habituais aos dramas clássicos, misturados às ferramentas dos nossos tempos – vide a menção à postagem de Cassiopée no Facebook. Neste conto despretensioso, as mulheres evoluem, porém o homem permanece igual: um sujeito fraco, malandro, sem qualidades. “Você é cheiroso”, dispara a esposa, como único elogio possível ao marido infiel. A guerra dos sexos, enquanto subgênero da comédia, adquire uma astuciosa releitura.

A estética cria suas regras próprias. Para cada cena, um único plano, fixo e à distância (nem os profissionais, nem as lentes da câmera ousam se aproximar das pessoas). O acaso é permitido: nuvens cobrem o sol e transformam a iluminação durante uma sequência, preservada pela montagem. Em analogia ao teatro, os artistas improvisam diante de elementos que saiam do controle, afinal, o espetáculo precisa continuar, e o gigantesco gramado representa nada mais que um palco. Escuta-se o som de carros e passantes fora do amplo enquadramento, sinal de que a floresta deve se encontrar próxima de alguma avenida. Côté permite que os ruídos invadam a sua mise en scène rígida, em termos de escolhas, mas brincalhona no que diz respeito ao contato com o real. Os personagens conversam à distância da câmera e do espectador, em contrapartida, escutamos os sons de suas falas como se estivessem ao nosso lado. A garota ouve rock, e embora nenhum dispositivo de som seja visto na narrativa, temos a impressão de uma captação in loco, sinal de um possível rádio tocando fora do enquadramento. O diretor torce o tempo e o espaço, aproximando-se de um realismo fantástico. Para a nossa surpresa, ao longo das reuniões com mulheres, Higiene Social desenha uma narrativa linear para Antonin e para as demais personagens.

Aos atores, cabe a diversão de um exercício de maneirismos. Maxim Gaudette explora tanto a elegância esperada do cavalheiro da alta sociedade quanto a inconsequência do homem contemporâneo. Larissa Corriveau, no papel de Solveig, fala ainda mais alto do que precisaria, sustentando cenas longuíssimas sem mudar um centímetro de sua postura corporal, a exemplo da sequência de abertura. O diretor permite estilos e escolhas distintas do elenco, cujos personagens pertencem literalmente a mundos diferentes. Aliás, os diálogos jocosos oferecem ótimo jogo cênico, incluindo as tiradas “Ser pobre não está mais na moda” e “Estou esperando você ir embora para chorar”. Ao final, o cineasta oferece uma guinada para que a experiência ultrapasse a paródia do real. Estes arquétipos da masculinidade e da feminilidade se tornam mais introspectivos, com direito aos primeiros close-ups (um para cada personagem, estritamente), e se encerrando com uma indagação sobre a alienação: “Em que pode pensar um bezerro que observa fogos de artifício”? Neste instante, o espectador deve reconhecer com facilidade o autor de Bestiário (2012), Vic + Flo Viram um Urso (2013) e Antologia da Cidade Fantasma (2018).

Higiene Social se converte numa bela narrativa feminina. Apesar de ter um homem no papel principal, são as mulheres que ditam o andamento de cada episódio, expondo-o ao ridículo pela aparência, o desempenho na cama, as mentiras, a situação financeira, a incapacidade de conseguir um emprego. Ele deseja trair a esposa, até descobrir que já era traído. Depois, tenta ganhar alguns trocados com o golpe fácil no carro de Aurore, até ser surpreendido por ela. O humor ridiculariza o macho alfa enquanto conceito ultrapassado: nesta trama perpassando diversos séculos, todas as mulheres possuem autonomia. Ainda que tenham outros homens, são independentes dos cuidados destes. A transposição do caráter emancipador às donzelas e camponesas se traduz numa simbologia subversiva em si mesma. O filme não vai muito mais longe do que isso, e tampouco se preocupa em efetuar um amplo tratado sociológico sobre as relações de gênero. Côté se satisfaz em explicitar a artificialidade dos códigos de conduta, sejam eles os da sociedade iluminista, do cinema contemporâneo ou da sociedade pandêmica. Trata-se de um humor crítico pela capacidade de exagerar nossas regras implícitas ao limite da caricatura.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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