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Sinopse

Um truque numa festa infantil dá muito errado. O passe de mágica transforma o pai da aniversariante numa galinha. Enquanto tenta encontrar algo que possa reverter esse absurdo, a esposa da vítima precisa tomar as rédeas da casa.

Crítica

Ensina-se nos cursos de roteiro que drama = comédia + tempo, ou seja, um motor cômico, quando estendido, perde a agilidade do humor e se torna propenso ao dilema dramático. Por exemplo, se um personagem rola escada abaixo, a cena pode despertar risos do público. Se a mesma figura permanece jogada ao fim dos degraus, sem se levantar, a cena perde sua graça e adquire contornos de seriedade. Algo semelhante ocorre em O Truque da Galinha (2021): quando o pai de uma família pobre numa vila de operários do Egito participa de um show de ilusionistas, na festa de aniversário dos filhos pequenos, todos riem quando o mágico o transforma em galinha. No entanto, a situação se revela menos divertida uma vez que o profissional fracassa na tentativa de reverter o feitiço, e o patriarca permanece na condição de animal. “Você está possuído!”, gritam os familiares na festa, correndo porta afora. A mãe se desespera, o filho chora. O mágico simula estratégias para desviar a atenção, sem sucesso. Acabou a diversão. No canto da casa, alheia aos problemas familiares, a galinha cisca algum pedaço de comida.

O diretor Omar El Zohairy utiliza este ponto de partida improvável para conceber um drama grave e surpreendentemente realista. Cuidando sozinha dos três filhos e do animal, que espera reconverter em marido, a matriarca se vê em dificuldades financeiras crescentes. A polícia recusa o pedido de ajuda, o antigo empregador do marido sugere apoio em troca de favores sexuais, que ela, assustada, dispensa. O “desaparecimento" repentino do pai serve de motor para sublinhar a desigualdade de renda no país - talvez os rumos da história fossem semelhantes caso o homem tivesse saído para comprar cigarros, e nunca voltado. A mãe passa a se confrontar ao machismo do sistema, à proibição religiosa de acolher mulheres no local de trabalho reservado aos homens, ao status indefinido de seu relacionamento (ela não é viúva, abandonada, desquitada, nem solteira). Em outras palavras, a retirada tragicômica da figura patriarcal força o roteiro a observar a condição feminina no acúmulo das funções de mãe, esposa, cozinheira, faxineira, babá e funcionária. Ironicamente, a família passa fome enquanto uma galinha gorda e saudável caminha pelo chão de casa.

Em termos de tom, a produção navega entre o grave drama social e o realismo fantástico, cujo teor mágico será trabalhado somente pela estética, ao invés dos conflitos narrativos. Uma vez concluída a transformação em animal, as escolhas de enquadramento, luz, profundidade de campo e duração dos planos se encarregarão de representar a fantasia persistente por trás da miséria. A casa, posicionada ao lado de um imenso cano despejando fumaça, é inundada por gases tóxicos com frequência, levando os moradores a abrirem e fecharem as janelas inúmeras vezes ao dia. O proprietário do imóvel passa para coletar o aluguel atrasado um, dois, três meses seguidos. Os pagamentos são ilustrados por mais de uma dúzia de planos de detalhe com maços de nota recebidos por alguma mão masculina. A repetição destas interações, em enquadramentos idênticos, favorece a impressão do surreal rompendo com o naturalismo. O gasto das magras economias com xamãs que tentam reverter o feitiço revela a exploração econômica derivada da ignorância e da fé dos pobres. A mãe calada e sem nome (Demyana Nassar) precisa encontrar alternativas rápidas para se impor, numa sociedade machista e conservadora, visando a sobrevivência de si e dos filhos.

A construção desta protagonista constitui um belo trunfo do roteiro e da direção. Apesar da postura piedosa, de rosto baixo e subserviente aos poderosos, ela se mostra progressivamente hábil na arte de encontrar brechas no sistema para garantir seu sustento. A estranheza das atitudes se reflete na alternância improvável entre grandes planos abertos e planos de detalhe fechadíssimos durante os atos de violência. Para a tentativa de abuso sexual, Omar El Zohairy posiciona a imagem ora a vários metros de distância do carro, ora apenas no canto do banco do passageiro onde se encontra a mãe. A alternância de extremos, em montagem paralela, atribui leveza às situações graves sem desculpá-las. Afinal, o diretor toma a precaução ética e moral de imputar a estranheza ao funcionamento do mundo, ao invés das atitudes da mulher. Se há algo fora do lugar neste contexto, ele se encontra numa usina que permite o trabalho de uma criança de seis anos de idade, mas proíbe a mão de obra feminina; ou do empregador abusivo que, por trás da aparente generosidade, tenta tirar proveito da personagem em situação fragilizada. O cineasta faz questão de ridicularizar as regras sociais, preservando honra de sua protagonista.

Por fim, O Truque da Galinha desperta um dos tipos mais férteis e complexos de humor: aquele do desconforto e da inadequação. Deveríamos estar rindo da galinha ciscando sobre a cama de casal, enquanto os filhos choram de saudade do pai no cômodo ao lado? É realmente divertida a cena de um feiticeiro preso ao minúsculo chão do banheiro sujo, tentando converter o bicho de volta à forma humana? Aqui, os mesmos elementos de tragédia são aqueles de comédia - ri-se da improbabilidade, em oposição à caricatura. De fato, os gestos dos personagens e as atuações mantêm um caráter contido. Assim, o longa-metragem solicita um espectador ativo, em dúvida sobre as intenções dos personagens e os rumos da imprevisível jornada. A conversão em bicho serve a retirar uma peça do sistema considerado estável de modo a revelar, por oposição, a artificialidade de uma estrutura patriarcal tida como orgânica. Enquanto a televisão transmite comerciais de pessoas sorridentes em suas piscinas, ou campos floridos numa cidade distante, a esposa-mãe-trabalhadora-protagonista escancara as barreiras legais, morais e religiosas de ser uma mulher independente no Egito contemporâneo. Às vezes, é preciso incluir um pequeno elemento de discórdia para revelar as fissuras de uma organização inaceitável muito antes da conversão de homem em ave.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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