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Sinopse

Bill trabalha na construção civil nos Estados Unidos. Ele nunca foi próximo da filha adolescente, mas passa a visitá-la na França, onde está presa por um assassinato que afirma não ter cometido. Quando surgem novos indícios capazes de inocentar a garota, Bill encontra a oportunidade perfeita para se redimir com a filha e encontrar o paradeiro dos verdadeiros responsáveis pelo crime.

Crítica

Em oposição à figura tradicional da mãe coragem e da mater dolorosa, eis o protótipo do pai coragem. O drama concebe um herói justiceiro fora dos códigos do cinema de ação - o sujeito não tem "habilidades especiais” para socos e tiros -, mas de abandonar a própria vida em nome daquela da filha adolescente. Bill (Matt Damon) nunca foi um pai exemplar, pelo contrário: negligenciou a criação da menina, e depois afastou-se da mãe no período de alcoolismo e vício em drogas. No entanto, quando Allison (Abigail Breslin) é presa na França, acusada de assassinato, ele se muda à cidade de Marselha e passa dias e noites em busca de uma maneira de liberá-la. Os problemas de dinheiro do homem desempregado são deixados em segundo plano, assim como obrigações nos Estados Unidos, amigos ou qualquer apego institucional em sua Oklahoma natal. Ele constitui o tipo de protagonista que Hollywood adora idealizar: embrutecido, com muitos erros no percurso, porém disposto a se redimir e se tornar um homem acolhedor, compreensivo e confiável. Nada comove tanto a indústria quanto um pecador arrependido. 

A surpresa deste projeto se encontra na tentativa de introduzir uma forma ampla de consciência social. Stillwater: Em Busca da Verdade (2021) pretende ser um filme politicamente engajado, dentro das possibilidades de Hollywood. Isso significa que ele introduz discretamente discursos progressistas, contanto que não alienem a parte conservadora do público, que também pode contribuir nas bilheterias. Assim, o roteirista francês Thomas Bidegain, acostumado ao retrato das minorias e da marginalidade urbana, une-se à equipe na proposta de uma trajetória de perdão generalizado a pais ausentes e filhas lésbicas, sem perturbar ninguém, nem apontar dedos aos responsáveis pelos dilemas. O filme propõe um encontro literal entre os Estados Unidos profundos, representados por um Matt Damon parrudo e bronco, do tipo que responde a todas as perguntas com “Yes, ma’am”, “No, ma’am”, e a França liberal, ilustrada por uma atriz progressista e de esquerda (Camille Cottin), que aceitará ser sua intérprete, amiga, confidente e, obviamente, interesse amoroso. Estados Unidos e Europa, esquerda e direita, progressistas e republicanos unem-se pelo amor.

É interessante assistir a este filme dentro da Mostra de São Paulo, ao lado de centenas das obras radicais, inventivas e criativas do mundo inteiro. Talvez os códigos padronizados da indústria passassem despercebidos nas salas do circuito comercial, mas neste contexto, a formatação do discurso se torna ainda mais explícita. O diretor Tom McCarthy constrói suas imagens no piloto automático, sob medida para as premiações norte-americanas. O ator fisicamente transformado, a garota interpretando uma menina lésbica e de moral ambígua, o cenário exótico, a figura do adolescente malandro das periferias compõem um prato cheio para a sugestão didática de abertura à alteridade. Não basta haver pessoas racistas no filme: é preciso imaginar o patrão de um café que dispara quatro insultos grosseiros por frase. Bill vai além do herói ianque brucutu: ele tem a águia careca tatuada no braço, e quando questionado a respeito de suas posições, grita: “Eu sou americano!”. Virginie representa a figura do teatro contemporâneo e desconstruído, que usa calças largas e faz ensaios de máscara dentro de casa, enquanto procura o "ritmo da luz” em sua composição. O universo é estereotipado dois ou três graus acima do naturalismo, imaginando um espectador incapaz de perceber sutilezas.

Por isso, o universo narrativo existe para Bill, importando-se pouco com as pessoas ao redor. O possível responsável pelo crime será encontrado por acaso, no meio de uma multidão de centenas de pessoas. Para o pedreiro que nunca foi um bom pai, o destino oferece uma filha postiça, Maya, de quem cuida com atenção exemplar, além de uma esposa simbólica para “colocá-lo nos eixos”. No caso das infrações que virá a cometer em nome da justiça (ou seria vingança?), todos ao redor estão dispostos a ajudá-lo, inocentá-lo e esconder seus atos. Ele precisa de intérprete? Virginie desempenha o papel em tempo integral. Precisa encontrar fotos online? A francesa Nedjma (Naidra Ayadi) dedica tempo à procura. Necessita de ajuda com um exame de DNA? Surge uma figura com contatos dentro da polícia. Precisa capturar uma pessoa? Tranquilo, pois a rua onde ambos se encontram, ao lado de um estádio de futebol, está completamente vazia. Por estes gestos, o autor demonstra sua empatia e defesa de Bill. Embora abrace discretamente os setores progressistas da sociedade, e acolha a adolescente lésbica com respeito, faz questão de perdoar o sujeito punitivista e reacionário, porque agiu com boas intenções, e seus adversários eram “homens maus”, em suas palavras. 

Assim, Stillwater: Em Busca da Verdade apresenta conversas entre duas pessoas em plano e contraplano; dezenas de stablishing shots (as imagens de fachadas de casas, prédios ou cidades) para indicar onde os personagens se situam; trilha sonora com dedilhados de pianos genéricos a cada transição de tempo e espaço; além de frases de efeitos (“Minha filha é inocente!”, “Não resolvemos os problemas desse jeito aqui”). Não há nada de errado, nem de particularmente certo, nestas escolhas. O mais interessante é perceber como elas se tornaram apreciadas e consagradas na indústria, sinônimos de qualidade em si. Tom McCarthy repete o estilo impessoal de “grandes valores em embalagens acadêmicas” premiado pela Academia em Spotlight: Segredos Revelados (2015), e nas obras de outros diretores, caso de Green Book: O Guia (2018), O Discurso do Rei (2010) e Crash: No Limite (2004). Trata-se de uma produção sem surpresas, e também sem grandes falhas, concebida para seus atores brilharem em composições distantes de suas personalidades habituais. Resta ver se as premiações seguirão recompensando esta concepção confortável de cinema, ou se permitirão abertura a linguagens mais arriscadas - caso de Nomadland (2020) e Parasita (2019).

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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