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Sinopse

Anna e Adam formam um casal polonês que decide passar férias numa ilha italiana. Chegando à casa alugada, descobrem que a piscina está quebrada, e foi esvaziada. Enquanto cobram uma resolução pelo problema, testemunham uma tragédia inesperada na propriedade. A dupla teria alguma responsabilidade pela morte mal explicada? Como seguir adiante depois do trauma?

Crítica

No início, o espectador não tem qualquer motivo para enxergar problemas nas férias paradisíacas planejadas pelo casal Anna (Agnieszka Zulewska) e Adam (Dobromir Dymecki). O casarão alugado numa ilha italiana possui ótimas condições de acolhê-los; uma pequena praia privativa se encontra à disposição; o casal atravessa boa fase no relacionamento. No entanto, as imagens sugerem conflitos no horizonte - ou talvez eles já estejam presentes, escondidos de alguma forma? A comunicação entre os dois poloneses é rara e lacônica. Eles são enquadrados no canto da imagem, espremidos, enquanto a direção de fotografia privilegia partes vazias da casa. Às vezes, durante a conversa, a câmera simplesmente os abandona para deslizar lateralmente em busca da paisagem vizinha. A chegada de um trabalhador local, visando consertar a piscina, oferece inúmeras possibilidades narrativas às quais a direção tem prazer em acenar: a sedução de Anna pelo belo rapaz, a disputa entre este e Adam, a invasão doméstica, o roubo, a trapaça com a dupla de viajantes ricos. Os planos fixos e longos esperam por um acontecimento transformador que tarda a chegar - o que não impede a direção de continuar procurando. A cineasta constrói uma ambientação asfixiante, indicando perigo e desejo a céu aberto.

Quando o conflito enfim acontece, Agnieszka Woszczynska efetua uma escolha radical: ela revela ao espectador o instante exato da tragédia, para em seguida afirmar que aquilo corresponde a uma parte ínfima da verdade. Estaria o espectador sendo trapaceado pelo filme? Precisamos duvidar de nossos próprios olhos? A morte se torna uma certeza, no entanto, cabe questionar os verdadeiros responsáveis pelos fatos. A opção de ângulos, iluminação e duração dos planos nos leva a crer que testemunhamos um segredo, porém havia outros indivíduos atentos à cena. Silent Land (2021) se converte num exercício fascinante de manipulação da linguagem cinematográfica enquanto produção de sentido. A autora possui controle absoluto de onde posicionar sua câmera, a partir de qual perspectiva, para obter qual efeito. Por isso, sustenta a ambiguidade claustrofóbica durante a integralidade da narrativa: apesar dos fatos insistindo que Anna e Adam são inocentes, eles seguem agindo como culpados. Diz-se que a tensão no cinema decorre do desnível de informações: na maioria das obras, o espectador sabe mais do que os personagens (quando testemunhamos um vulto passando pelo fundo do corredor nos filmes de terror, por exemplo), mas neste caso, são os hóspedes da casa que ocultam segredos do público.

Embora sustente a estrutura do drama, o resultado se aproxima de um suspense psicológico, graças à complexidade dos embates sociais. Discretamente, evitando converter a história num panfleto político, a autora embute choques entre ricos e pobres, turistas e moradores locais, homens e mulheres, policiais e cidadãos. Ao invés de se posicionar ao lado da vítima, o roteiro prefere ficar junto aos possíveis responsáveis, dissecando seu comportamento para compreender a postura da burguesia diante da desumanização dos trabalhadores. Ainda que dispense o cinismo perturbador dos filmes de Michael Haneke, aproxima-se de O Vídeo de Benny (1992) pela análise da culpa (ou falta da mesma) dos detentores do poder, e pelo voyeurismo buscando estender a indagação ao espectador - no seu lugar, o que você teria feito? Teria agido diferentemente dos protagonistas? Os lentos zooms in rumo ao rosto e corpo do casal traduzem a vontade de penetrar os corpos, as cabeças, ultrapassando a expressão inalterada da dupla central. Esqueça choro, desespero e raiva: a diretora opta por movimentos minúsculos, quase imperceptíveis do elenco. O decoro se traduz em arrogância e no sentimento de superioridade dos poloneses: no fundo, eles sabem que jamais serão incriminados. Assim como o assassino Benny, convertem-se nas verdadeiras vítimas pela perspectiva dos italianos da região.

Silent Land desenvolve estes preceitos através de metáforas repetidas, adquirindo novos sentidos conforme retornam à trama. A narrativa destina atenção especial a um cachorro que visita a casa diariamente, até adquirir um papel fundamental no último terço. As cenas de sexo preservam uma disposição equivalente: a intimidade de marido e esposa é reservada ao quarto escuro, em posições onde não precisem se olhar nos olhos - estariam pensando em outra pessoa, ou coisa? O barulho da britadeira consertando a piscina se transforma numa solução inicialmente, e num martírio, em seguida. Enquanto isso, as águas do mar, da piscina e do chuveiro transitam entre simbologias muito diferentes: elas podem nos alimentar e nos afogar, representar diversão e medo. As refeições à mesa, captadas em ângulo idêntico, sublinham a transformação entre o início e a conclusão, quando a câmera efetuará seu primeiro zoom out, abandonando Adam e Anna. O filme fornece sugestões ricas pelo ambiente sonoro, mas também pelo uso do silêncio. Ele traz tantos significados pelo que revela ao espectador (a conversa entre marido e amigo à mesa) quanto por aquilo que oculta (a conversa entre esposa e amiga na parte externa, longe da nossa visão. A tragédia constitui o ápice do debate sobre a compreensão a partir do enquadramento e a partir do que se encontra fora do quadro. Como diriam os manuais de direção cinematográfica, qualquer ato de enquadrar implica numa seleção e numa exclusão dos elementos ao lado do frame.

Tais questionamentos se combinam com um trabalho impressionantemente coeso de fotografia, montagem, direção de arte e design sonoro. Nenhum aspecto técnico chama mais atenção a si próprio que os outros: a montagem elíptica sabe esticar os planos até parecerem suspeitos (estamos esperando algo acontecer?), ajudada pela disposição a usar planos fixos, pela decoração com câmeras de segurança na casa, pela construção estética de uma burguesia progressista, porém firme no intuito de preservar seus privilégios. A alternância de línguas entre polonês, italiano, inglês e francês oferece os ruídos de comunicação e interpretação que a diretora tanto valoriza: Woszczynska faz da dificuldade de compreender o outro (por fatores culturais, sociais e políticos) um tema em si próprio. Por isso, depois de privilegiar instantes com Adam e Anna juntos, passa a filmá-los em planos separados, dentro de cômodos distintos, favorecendo a sensação de ruptura. A multiplicação de reflexos no espelho e de quadros-dentro-do-quadro, criados pelas batentes de portas e molduras, aprofunda o aspecto de fragmentação. Em seu primeiro longa-metragem, a cineasta apresenta raríssima maturidade para operar as múltiplas ferramentas de linguagem na construção de um estado emocional complexo.

Filme visto online no Festival Internacional de Toronto 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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