Realmente, 2020 é um ano ímpar na história recente da humanidade. Mais que qualquer coisa, esses 365 dias vão ficar para sempre marcados por palavras tais como pandemia, coronavírus e Covid-19. A doença que se alastrou rapidamente pelo mundo, matando milhões – até o fechamento desta matéria foram quase 200 mil óbitos confirmados apenas no Brasil – confinou boa parte da população, dificultou a interação social e fez as expressões aglomeração e distanciamento social caírem na boca do povo. Quanto ao cinema, especificamente ao brasileiro, tivemos um ano de várias tentativas de desmonte das políticas públicas de fomento, retomada federal da Cinemateca Brasileira sem planos de administração, ataques gratuitos e públicos a uma área econômica vital, enfim, não podemos dizer que as coisas foram realmente boas. A respeito dos lançamentos, eles aconteceram de modo bastante limitado, daí a dificuldade de nossos editores, redatores e colaboradores chegarem a completar suas solicitadas listas individuais de 20 filmes para que, no cruzamento, estabelecêssemos os 10 Melhores de 2020. Nosso critério permaneceu sendo o lançamento comercial, em qualquer plataforma. Valeu cinema, streaming, VoD, drive-in, mas desde que tenha sido tipificado como lançamento comercial. Assim, foram considerados inelegíveis os filmes que tiveram apenas exibição em festivais de cinema, mesmo que em 2020 estes estivessem mais próximos de todos por conta da dinâmica online. Então, sem delongas, confira o nosso Top 10 Melhores Filmes Brasileiros de 2020 e, no fim da matéria, as listas individuais de cada membro da equipe do Papo de Cinema.

 

10 – Alice Júnior, de Gil Baroni
O drama dirigido por Gil Baroni fez uma bonita carreira em festivais de cinema. No Brasil, passou pelo Festival de Brasília 2019, onde foi premiado como Melhor Atriz (Anne Mota), Atriz Coadjuvante (Thaís Schier), Montagem e Trilha Sonora. Também foi laureado no Festival Mix Brasil 2019, Festival do Rio 2019 e exibido na Mostra Geração do Festival de Berlim 2020. Realmente nada mal para um filme pensado para ser uma aventura leve, ainda que de cunho naturalmente político. Lançado diretamente em VoD, com exibições em drive-in e posterior inclusão no prestigiado catálogo da Netflix, o longa-metragem tem como protagonista uma jovem transexual que se muda de uma cidade cosmopolita nordestina a uma tacanha localidade no interior do Sul do Brasil. Além das dificuldades naturais de adaptação por ser forasteira, ela vai ter de lutar para ser lida socialmente como mulher, a despeito das enraizadas tradições excludentes ainda prevalentes na região, isso tudo numa narrativa gostosa, visualmente criativa, em que a protagonista pretende dar o seu primeiro beijo.
Entrevista com o cineasta Gil Baroni
Live com o cineasta Gil Baroni
Live com a atriz Anne Mota

 

 

09 – Breve Miragem de Sol, de Eryk Rocha
Selecionado para o Festival do Rio, à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ao festival de Londres, todos em 2019, o mais recente longa-metragem do cineasta Eryk Rocha teve um lançamento comercial no Brasil que poder ser considerado bastante sintomático do ano de 2020. Até mesmo por conta das regras a serem seguidas por obras contempladas com financiamento público parcial ou integral, os filmes brasileiros tem invariavelmente passado antes de qualquer coisa pelas telonas para depois chegar a streaming e VoD. Com a pandemia, essas mudanças – que para muitos soam como um sinal apocalíptico, mas a outros parecem uma via interessante de disseminação do nosso cinema – foram aceleradas. Lançado diretamente no Globoplay, Breve Miragem de Sol tem como protagonista um homem negro, motorista que atende a demandas de aplicativos, que se relaciona de uma maneira muito particular com a cidade a partir do banco de seu carro. Com a câmera colada em seu semblante boa parte do tempo, ele é atravessado por várias questões e pondera sobre uma encruzilhada emocional.
– Entrevista com o ator Fabrício Boliveira

 

 

08 – Indianara, de Aude Chevalier-Beaumel, Marcelo Barbosa
O documentário dirigido por Aude Chevalier-Beaumel, Marcelo Barbosa teve sua première mundial numa mostra paralela do Festival de Cannes 2019. Depois, percorreu alguns outros eventos até que chegou a canais importantes, sendo bastante visto e discutido nas redes sociais. E não é para menos. O filme tem como seu ponto nevrálgico a ativista Indianara Siqueira, mulher transexual que faz de seu cotidiano uma luta constante contra elementos asfixiantes da tradição machista, homofóbica e excludente desse país que, a despeito de ser maravilhoso, tem chagas profundamente entranhadas que teimam em reduzir-lhes a formosura. Indianara coordena a Casa Nem, centro de acolhimento para transexuais que, sem tal espaço, estariam provavelmente vivendo em condições de mendicância. A câmera da dupla de cineastas demonstra um afeto e uma admiração enorme por essa mulher que se diz cansada de lutar diariamente, mas cuja garra não arrefece nem mesmo diante dos problemas mais brutais. Um filme que mostra fraturas expostas de um Brasil adoecido pela discriminação.
– Entrevista com os cineastas Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa
Live com Indianara Siqueira
Live com os cineastas Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa

 

 

7 – Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem, de Fred Ouro Preto
Uma das grandes surpresas de 2020 é esse documentário lançado diretamente na Netflix que contempla o registro de um show histórico do rapper Emicida no Teatro Municipal de São Paulo e reflexões íntimas/amplas sobre o papel do negro ao tecido social brasileiro. Por meio da música, o artista manda suas letras, fala sobre as aspirações de uma parcela majoritária da população que corre risco diário apenas por conta da cor de sua pele. Emicida fala com orgulho da ocupação daquele espaço destinado por muito tempo à alta burguesia branca da metrópole construída, como a maiores delas, com o suor dos marginalizados. O samba, o rap, a arquitetura, os afetos, tudo entra nessa argamassa que faz de Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem um filme ao mesmo tempo inflamável e acalentador; capaz de instigar a indignação por conta do coeficiente excludente da nossa sociedade e de estimular nosso centro de afeto. Um documentário dançante que reforça a obviedade pouco refletida de que somos um ponto intransigente, embora transitivo, entre passado e futuro. Que, sem buscar a força de um, a gente não transforma o outro.

 

 

6 – Aos Olhos de Ernesto, de Ana Luiz Azevedo
O cinema já se colocou muitas vezes diante do choque potente entre visões de mundo distintas. Numa realidade contemporânea polarizada, em que a mínima cisão entre perspectivas parece causar um incômodo inconciliável, é sempre bom se deparar com uma visão sensível como a da cineasta Ana Luiza Azevedo sobre universos aparentemente díspares, mas que podem ganhar potências se permitirem ser modificados pelo outro. Ernesto, um fotógrafo uruguaio que vive sua velhice na Porto Alegre que o adotou, é atravessado pela jovial Bia, adolescente com uma série de sonhos interditados e impossibilidades para sair de um aparente lamaçal inescapável. Ele, com sua experiência e capacidade enorme de empatia e compreensão, vai doar-se em medidas para que a jovem possa se equilibrar. Ela, por sua vez, vai injetar vivacidade no cotidiano desse homem acabrunhado, já vivendo o que parece ser os finalmente de uma existência. Se trata de um diálogo belíssimo entre prismas potencialmente conflitantes, mas que aqui encontram um jeito, a despeito das diferenças, de ajudarem-se.
– Entrevista com a atriz Gabriela Poester
Live com a cineasta Ana Luiz Azevedo

 

 

5 – Fim de Festa, de Hilton Lacerda
Profissional experiente do cinema brasileiro, Hilton Lacerda chamou ainda mais atenção do público com seu longa-metragem de estreia, o maravilhoso Tatuagem (2013), que fez barba, cabelo e bigode no Festival de Gramado daquele ano. Fim de Festa (2020) é a segunda direção de Hilton, ele que conta novamente com um desempenho luminar de Irandhir Santos como o policial que enfrenta questões domésticas simultaneamente ao encargo de investigar a morte de uma turista francesa. Habilmente, o cineasta entrelaça as demandas pessoais com essa mistura potente de erotismo latente e violência consumada. O carnaval, festa da alegria por excelência, trouxe com ele uma situação trágica, mas os quatro jovens, incluindo o filho do policial citado, querem prolongar a sensação de êxtase que toma conta do Brasil quando o reinado de Momo é proclamado. Os segredos não são tão relevantes quanto as pequenas revelações emocionais durante os processos de investigação criminal e emocional dos personagens, sobretudo o de Irandhir, não à toa considerado um dos grandes de sua geração.
– Entrevista com o ator Irandhir Santos
– Entrevista com a atriz Suzy Lopes

 

 

4 – O Barco, de Petrus Cariry
Numa comunidade de pescadores no Ceará, uma mulher tem 26 filhos, cada um nominado com uma letra do alfabeto. A, o primogênito, é daquele tipo que personagem que anseia ir além, ter experiências que o desloquem da vida de sempre. O cineasta Petrus Cariry faz um filme de atmosfera carregada, de enquadramentos rigorosos, de uma tensão latente que permeia todas as relações. Ele se apropria de elementos míticos para construir uma mitologia própria, uma ode à palavra com ares de paradoxo por conta do valor conferido é imagem, aos gestos e ao silêncio. Com esse filme, o realizador cearense segue demonstrando-se um dos mais potentes da nova geração, alguém capaz de evocar realidades paralelas em mundos imaginados a partir de deslocamentos de elementos prosaicos e figuras rotineiras. O homem que decidiu calar-se; o oráculo cego que alude aos gregos; a mulher vinda d’água que enfeitiça homens com a voluptuosidade de suas histórias muitas vezes aterradoras; a mãe que, enamorada pelas letras, e por conseguinte pelas palavras que dela podem advir, observa preocupada os anseios de emancipação do mais velho. Um filme para sentir.
Entrevista com os atores Everaldo Pontes e Verônica Cavalcanti
– Entrevista com o cineasta Petrus Cariry
Live com o cineasta Petrus Cariry
– Opinião :: O Barco, as imagens de morte e os paradoxos da aventura
– Podcast 2020 #24 :: O Barco

 

 

3 – Babenco – Alguém tem de Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz
Não é realmente comum que os países escolham documentários para representa-los como postulantes a uma das cinco vagas na categoria Melhor Filme Internacional do Oscar. Até mesmo pela ousadia, palmas à comissão que selecionou esse filme-afeto para ostentar orgulhosamente a bandeira verde, amarela, azul e branca – ultimamente tão vilipendiada internacionalmente por conta dos nossos rumos políticos. Bárbara Paz faz uma homenagem lindíssima ao seu falecido companheiro, o cineasta Hector Babenco, não necessariamente tentando se aproximar linguisticamente do estilo dele, mas buscando uma voz própria para revelar o homem/artista que ela conhecia na intimidade. Bárbara ressignifica em preto e branco alguns filmes de Babenco, mistura tais citações aos vislumbres do cotidiano que vão de ensaios caseiros a dolorosos registros da dinâmica hospitalar. O cinema é convocado a ser testemunha da vida, mas também do instante em que a finitude incomodamente bate à porta. Um filme sensível que, não à toa, venceu um prêmio importante no Festival de Veneza 2019.
– Entrevista com a cineasta Bárbara Paz
Live com a cineasta Bárbara Paz

 

 

2 – Pacarrete, de Allan Deberton
Como não se apaixonar por Pacarrete? Interpretada brilhantemente por Marcélia Cartaxo – finalmente mais um papel à altura da envergadura artística dessa atriz enorme –, a moradora da cidade de Russas, no interior do Ceará, já conquista o espectador ao transformar ludicamente o ato de varrer a calçada num passaporte poético aos palcos de balé. Aquele é seu mundo, portanto ela vai cuidar dele com a mesma atenção e emprenho com que decide montar uma apresentação para agraciar os conterrâneos na festa por conta do aniversário da cidade. Treina sem parar, manda fazer um vestido desenhado de próprio punho e demonstra um investimento comovente à arte que a transporta a outros mundos. Pacarrete é desacreditada pelos vizinhos, por pessoas próximas, encontrando afago apenas no comerciante local com quem ela flerta quase inocentemente. Pacarrete é como um Dom Quixote de saias, lutando contra moinhos de vento, transmutando-os em gigantes dada a complexidade de tarefas bastante simples. É uma idealista. Uma romântica apaixonante. O filme foi citado como melhor do ano por dois dos nossos cinco votantes. É muita coisa.
– Entrevista com o cineasta Allan Deberton
Live com a atriz Marcélia Cartaxo
Live com o ator João Miguel
Live com o cineasta Allan Deberton
– Opinião :: O grande momento de Marcélia Cartaxo

 

 

1 – Sertânia, de Geraldo Sarno
Como é gratificante assistir a um filme tão ousado quanto este. Do alto de seus respeitáveis 82 anos, o cineasta Geraldo Sarno tramou algo que transpira a estética mitológica do sertão. O sol invade a cena, banhando excessivamente de luz, num expediente ao mesmo tempo passível de ser compreendido como ultrarrealista e delirante. O protagonista é um homem à beira da morte, cangaceiro que terá tempo suficiente para, em agonia, revisitar partes importantes de sua existência como homem e fragmento de uma costura social bastante sintomática. Cada retorno a esse corpo prestes a sucumbir traz uma voltagem diferente, uma prevalência que antes tinha apenas se insinuado. Nesse radicalismo exuberante, Geraldo Sarno devolve ao Nordeste profundo o lugar que ele sempre ocupou dentro do imaginário do cinema brasileiro, estabelecendo uma ponte dialógica direta com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), irmanando-se com ele no delírio febril de uma realidade atravessada por sonho, misticismo e o fantástico. O rosto do protagonista vira a própria terra árida do Sertão, se transforma em território. Se preciso for, ele vai transitar entre os mortos para saber antes de sucumbir. Dos nossos cinco membros consultados, ele foi o grande vencedor para três, o que lhe garantiu uma vitória mais que merecida. A impressão que permanece é a de que ainda falaremos por muito tempo da audácia e da beleza dele.
– Entrevista com o cineasta Geraldo Sarno

 

LISTAS INDIVIDUAIS

Robledo Milani, editor-chefe

  1. Pacarrete
  2. Aos Olhos de Ernesto
  3. O Barco
  4. Sertânia
  5. Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou
  6. Fim de Festa
  7. Indianara
  8. Todos os Mortos
  9. Três Verões
  10. Carlinhos e Carlão
  11. Alice Júnior
  12. M-8: Quando a Morte Socorre a Vida
  13. Meio Irmão
  14. Breve Miragem do Sol
  15. A Divisão
  16. Casa de Antiguidades
  17. Disforia
  18. Macabro
  19. Verlust
  20. Tudo Bem no Natal Que Vem

 

Bruno Carmelo, editor

  1. Sertânia
  2. Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou
  3. Pacarrete
  4. Indianara
  5. Aos Olhos de Ernesto
  6. Mulher Oceano
  7. Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem
  8. Fim de Festa
  9. O Barco
  10. Partida
  11. Cidade Pássaro
  12. Soldado Estrangeiro
  13. Breve Miragem de Sol
  14. Cabrito
  15. Inaudito

 

Marcelo Müller, editor

  1. Sertânia
  2. Emicida: AmarElo: É Tudo pra Ontem
  3. O Barco
  4. Partida
  5. Aos Olhos de Ernesto
  6. Babenco – Alguém tem de Ouvir o Coração e Dizer: Parou
  7. Indianara
  8. Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil
  9. Fim de Festa
  10. Pacarrete
  11. Casa
  12. Os Sonâmbulos
  13. Breve Miragem de Sol
  14. Querência
  15. Narciso em Férias
  16. Açúcar
  17. Soldado Estrangeiro
  18. Alice Junior
  19. Atrás da Sombra
  20. 10 Horas para o Natal

 

Victor Hugo Furtado, redator

  1. Pacarrete
  2. Babenco – Alguém tem de Ouvir o Coração e Dizer: Parou
  3. Três Verões
  4. Alice Júnior
  5. Verlust
  6. O Barco
  7. Açúcar
  8. Sem seu Sangue
  9. Disforia
  10. Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu
  11. Teocracia em Vertigem

 

Leonardo Ribeiro, colaborador

  1. Sertânia
  2. Cidade Pássaro
  3. Breve Miragem de Sol
  4. Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu
  5. Emicida: AmarElo: É Tudo pra Ontem
  6. Fim de Festa
  7. Mulher Oceano
  8. Todos os Mortos
  9. Nóis por Nóis
  10. Atrás da Sombra
  11. Guerra de Algodão
As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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