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Sinopse

Letícia é uma filha que fica dez anos fora de casa resolve retornar para o seu lar. Porém, esse processo é um pouco complicado por conta das crises de depressão e bipolaridade de sua mãe, mas também um motivo de reaproximação familiar. Na tentativa de adensar os laços, Letícia acessa velhas fotos e objetos de família, mas, para isso, ela irá precisar convencer sua mãe de que é uma boa ideia.

Crítica

A cineasta Letícia Simões faz de Casa uma corajosa apuração das tensões da própria família, sobretudo as que apartam suas mãe e avó. Depois do mergulho solitário nas lembranças desprendidas da visita à velha residência de veraneio em Itaparica, ela, em meio às intervenções plásticas nas fotografias já desbotadas pelo tempo, comenta que a genitora fora diagnosticada há anos como bipolar. É intensa essa exposição de intimidades, não apenas a dela, mas também a da mulher que recorrentemente verbaliza o sonho de ter um neto, utilizando a solidão como argumento supostamente sensibilizador. A realizadora registra conversas sintomáticas, colóquios que começam revestidos de banalidade, como o mantido no carro em trânsito direto do aeroporto, mas que gradativamente adquirem contornos substanciais, uma série de ambiguidades, contratempos e senões que emergem e se impõem. Ambas estão cientes de serem filmadas e se abrem.

Em diversos instantes os bate-papos se transformam em discussões, oportunidades para amarguras virem à tona. Letícia afirma sua posição de perscrutadora, aquela que, curiosa e senhora do direcionamento das lentes, indaga a mãe sobre pequenas nódoas domésticas, como a pouca disposição em escutar e compartilhar experiências particulares. Porém, de modo crescente, absorvida pelo processo de encenação, que passa a ser mais orgânico, pois dotado de menos cálculos, ela se joga no epicentro dos redemoinhos, ocasionalmente deixando emergir com força suas contrariedades. Isso ganha outro, e potente, capítulo com a entrada em cena da avó, senhora de 92 anos que mora num asilo. Já na primeira vez em que as três são enquadradas juntas, ficam claros os vários bloqueios da mãe frente à mulher com quem não consegue conviver, sequer chamar pela designação familiar, se referindo a ela formalmente pelo nome de batismo. A tensão é bastante evidente.

Casa torna multifacetados os elos mediados pela memória ora pulsante, ora evanescida em virtude da passagem implacável do tempo. Diferentemente de mãe e filha, plenamente cientes da feitura de um documentário a partir dessa consecução de fricções, a avó de saúde prejudicada demonstra estar praticamente alheia a tal engenharia. Não que esse dado cause algum desnível, mas deixa aberta a possibilidade de questionamentos quanto à ética frente à personagem idosa, embora ela exiba uma lucidez que não torne isso necessariamente algo problemático. Letícia, longe de construir um retrato edulcorado de si, oferece inclusive suas dificuldades diante da fragilidade psicológica da mãe. Em um par de instantes, chegando a perder as estribeiras com a instabilidade materna, demonstrando o quanto aquilo a impacta diretamente, ela toma as dores da fragilizada avó. Por sua vez, a genitora evoca um histórico de maus tratos, motivo da hostilidade.

Letícia privilegia a complexidade que permeia esses vínculos acidentados de sua família, resgatando episódios como a queimadura provocada pelo pai embriagado, a genealogia (carimbada por toda sorte de demandas) que desemboca numa sucessão de turbulências. A filha tem ressalvas quanto à mãe que, por sua vez, assim também procede com relação à avó. A morte entra em certo ponto nessa equação sensibilizada pelo destemor da realizadora ao investigar-se durante um encadeamento provavelmente doloroso. Decidida a não engravidar, de certo modo quebrando inconscientemente um fluxo de hereditariedades nem sempre positivo, a jovem causa desgosto à mãe, cuja expectativa era ter netos a fim de, com eles, talvez, mitigar a solidão. Casa é um filme no qual os afetos se avolumam e ocasionalmente transbordam, de trajeto marcado pelo enfrentamento das fissuras e as dificuldades. Isso sublinha a força dramática dos instantes ternos, como o belíssimo vislumbre de mãe e filha na praia, no Ano-novo, iluminadas por fogos de artifício que apontam à beleza daquele abraço.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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