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Sinopse

Eu já vivi minha morte, agora só falta fazer um filme sobre ela”, afirma o cineasta Hector Babenco a Bárbara Paz, ao perceber que não lhe resta muito tempo de vida. Ela aceita a missão e realiza o último desejo do companheiro: ser protagonista da própria morte. Nesta imersão na vida do diretor, ele se desnuda, consciente, em situações íntimas e dolorosas. Revela medos e ansiedades, mas também memórias, reflexões e fabulações, num confronto entre o vigor intelectual e a fragilidade física que marcou sua vida. Do primeiro câncer, aos 38 anos de idade, até a morte, aos 1970, Babenco fez do cinema remédio e alimento para continuar vivendo.

Crítica

A certa altura deste documentário, o diretor Hector Babenco, muito doente, afirma que já concluiu os filmes da sua vida, faltando apenas fazer o filme de sua morte. Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração de Dizer: Parou constitui esse filme, elaborado não exatamente pelo cineasta, mas com ele, através do olhar da ex-esposa, diretora e atriz Bárbara Paz. Havia inúmeras razões pelas quais o projeto poderia dar errado: a proximidade excessiva com o tema tenderia à idealização, enquanto o retrato da doença se prestaria ao drama excessivo. A noção de um filme-testamento soaria fúnebre ou hagiográfica, ao passo que a imagem do declínio físico do cineasta resultaria exploradora e invasiva.

Ora, é um prazer descobrir a capacidade da cineasta em fugir a todas essas armadilhas. O projeto se despe de qualquer vocação explicativa, linear ou cronológica. Não existe uma relação de causa e consequência entre o diretor e seus filmes, apenas uma associação metafórica entre imagens produzidas ao longo de décadas e cenas caseiras de Hector e Bárbara discutindo cinema. Enquanto tantos diretores utilizam a voz do biografado como narração condutora às cenas das obras, a cineasta privilegia o caminho contrário, fazendo com que a voz dos filmes (diálogos em off) sirvam de condução às imagens de Babenco. Durante parte considerável da narrativa, o som está dissociado da imagem, cada um produzindo sua própria narrativa, num encontro inédito do autor com sua própria obra.

Esteticamente, a cineasta adota recursos corajosos, em especial a homogeneização das imagens em preto e branco. Filmes conhecidos no imaginário popular, como Carandiru (2003) e seu tom marrom-terra ou O Beijo da Mulher Aranha (1985) e os verdes de sua natureza são redescobertos num inédito preto e branco, o que trata de não apenas reler estas imagens, mas aproximá-las umas das outras, diminuindo a diferença de captação e de tom com os vídeos caseiros entre marido e esposa. A belíssima montagem permite o silêncio, a contemplação e o desconforto, elementos fundamentais para a reflexão além da comoção humana. Paz não se dedica apenas a honrar o estilo de Babenco, diretor mais experiente do que ela, mas também busca sua estética própria, dotada de autonomia.

Assim, a direção surpreende por sobrepor o afeto evidente dos recursos de linguagem à maneira brutal com que o cineasta enxergava a morte. Esta narrativa fluida, costurada como uma livre associação de ideias, é unificada pelo pensamento da finitude, da primeira à última imagem. Babenco expõe seus medos, vaidades e orgulhos, enquanto Paz, posicionando-se em personagem ao lado dele, busca oferecer esperança diante do quadro clínico complicado. O cineasta deseja, de certa maneira, controlar a sua morte, em oposição à perda de controle sobre o corpo. Assim, o ato de filmar remete à função primária de registrar, embalsamar um fato para a posteridade. Enquanto discursa sobre a passagem do tempo e a impermanência das coisas, o documentário imortaliza Babenco, o amor do mesmo por Paz, e o dela pelo marido.

O diretor pode ter falecido, mas tanto os seus filmes quanto seu afeto serão preservados, lado a lado, unidos pelo mesmo corte da montagem, o mesmo preto e branco, como se criador e criatura não pudessem mais ser separados, como se o amor pelos filmes e o amor pelas pessoas constituíssem um único movimento. Mistura de filme fantasmático e filme arqueológico, de homenagem e de autoficção, o resultado jamais para de impressionar, mesmo na deslumbrante cena final, fugindo ao esperado peso do falecimento para sugerir a superação simbólica a morte. Babenco, o diretor e o companheiro, é inserido numa carinhosa proposta de ficção, oferecida como presente utópico.

Se os políticos célebres saíam da vida para entrar na História, Babenco sai da vida para entrar no cinema, para se tornar matéria de filme, textura de imagem, ao invés de um simples objeto de estudo e adoração. Ao final, não existe mais diferença entre a imagem e sua representação, como se a cineasta buscasse superar o decalque platônico por meio do afeto. Quando a atriz-personagem corre em direção à câmera com os braços abertos, ela abraça ao mesmo tempo o cinema e Babenco, o olhar do amado e o do próprio público - através de uma cena concebida por ele. O filme é oferecido ao espectador com tamanha generosidade que é difícil não se comover diante com seu humanismo e inventividade. Todo artista inovador merece, ao ser abordado no cinema, um retrato à sua altura.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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