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Sinopse

Caetano Veloso foi preso durante a Ditadura Civil-militar brasileira no dia 27 de dezembro de 1968. De sua casa em São Paulo, foi levado ao cárcere no Rio de Janeiro, onde permaneceu durante 54 dias.

Crítica

A certa altura de Narciso em Férias, Caetano Veloso associa lágrima e esperma como possibilidades do transbordar. Na memória, a natureza ressequida derivada do encarceramento. Tornado árido pela arbitrariedade dos militares a serviço da ditadura condutora do Brasil nos famigerados anos de chumbo, o artista se via impossibilitado de chorar e gozar. No significado duro dessa constatação pesarosa se encontra o efeito profundo das violências perpetradas não apenas contra o corpo, mas também direcionada ao psicológico e à alma do sujeito tirado de casa sob motivo desconhecido. Como o Joseph K, protagonista de O Processo de Franz Kafka, ele sequer teve a possibilidade de se defender diante da mais completa ignorância acerca do que era acusado de ser ou ter feito. Curiosamente, o Caetano que resgata esse passado doloroso dá poucos sinais de emoção, como se tivesse sido endurecido pela experiência. Somente ao resgatar a enorme bondade do sargento que lhe permitiu derramar-se em prazer com sua esposa, Caetano lacrimeja e desaba, pedindo para parar.

Em Narciso em Férias, os diretores Renato Terra e Ricardo Calil optam por uma economia sintomática, às vezes conveniente, mas que tem como função não desviar o foco da oralidade. Mais até do que a trajetória posterior à prisão em São Paulo e aos episódios exasperantes nas cadeiras cariocas, importa compreender o tamanho das nódoas de tintas indeléveis. A linguagem não prevê malabarismos de câmera e montagem, esta inclusive refuta o corte, para tornar visíveis determinadas correções e/ou reposicionamentos. De maneira análoga, sobressai a voz do entrevistador que trata de recolocar o protagonista novamente no eixo de sua própria História sempre que uma derivação ameaça a descontinuidade do fluxo de reminiscências. Certamente amparado num briefing prévio, esse inquisidor cria certos parâmetros entre os quais o cantor e compositor pode trafegar, assumindo essa posição de delimitador que, por conseguinte, expõe uma tentativa de evitar perder-se em tergiversações e afins. Pena que há poucos espaços à incorporação da linguagem na discussão.

Depois de uma primeira metade calcada nos dizeres de Caetano Veloso, na organização mediada dessas recordações sobre confinamentos solitários, conversas com sujeitos identificados apenas pelo sotaque e uma menção à peculiar cena dantesca do jantar servindo como tortura psicológica, Narciso em Férias encontra um ponto de contato/diálogo interessante com o registro escrito dos depoimentos do protagonista. Caetano lendo os autos de seus testemunhos é o melhor que esse documentário apresenta quanto à capacidade de variação do discurso para articular uma potência retórica. O artista ri diante da construção frasal sem pontos e aspas, zomba um tanto desconfortável da sisudez do datilografar de suas respostas e se justifica frente a algumas saídas que podem parecer artifícios para salvar a própria pele. Diante de uma fotografia da Terra, publicada à época de sua prisão, Caetano alude ao momento específico em que o mundo discutia conquistas espaciais enquanto seu microcosmo era afrontado pela truculência do regime tão ignóbil quanto antidemocrático.

Na aparente imobilidade de Narciso em Férias, cabe uma série de pequenas mobilidades, tais como as citadas, engatilhadas por sutis ajustes entre passado e presente – as lágrimas faltantes outrora, presentes na atualidade –, e a conversa entre aquilo que ficou retido na memória e seu equivalente lavrado nas páginas duras de uma História cunhada por aqueles que estavam no poder. No entanto, o documentário poderia ser mais dinâmico, menos franciscano, e ainda manter prevalente sua proposta de economia narrativa para privilegiar a transmissão oral dos conhecimentos. Estes, ao mesmo tempo, são concernentes a um período de nossa trajetória coletiva relativamente recente e à intimidade do jovem que representava liberdade e novas possibilidades com letras, melodias e a cabeleira esvoaçante. Caetano cantando Hey Jude sublinha a arte como força de resistência, matéria importante nos dias atuais, em que o autoritarismo ensaia colocar as manguinhas novamente de fora. Ainda que apresente um tom visual e sonoro monocórdico, o filme expressa essa vontade de ser, antes de tudo, ouvinte, ainda que os realizadores deixem bem clara a importância de certos parâmetros.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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