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Sinopse

Ernesto, um fotógrafo uruguaio que vive em Porto Alegre, vem enfrentando as limitações da velhice — como a crescente cegueira. Um dia, a jovem Bia, uma cuidadora de cães, atropela a sua vida e coloca em risco seu metódico cotidiano. Ernesto tem novas conquistas através da intensa companhia de uma menina de 23 anos de idade.

Crítica

Ao final da sessão de Aos Olhos de Ernesto, um grupo de amigos debatia pelos corredores: como ainda não tínhamos ouvido falar em Ana Luiza Azevedo? Experiente roteirista e assistente de direção da Casa de Cinema de Porto Alegre, além de curta-metragista, ela demonstra uma segurança e um refinamento incomuns a diretores com poucos longas-metragens no currículo. Seu projeto desperta a impressão de que o cinema brasileiro finalmente consegue efetuar a imersão no estilo agridoce argentino-uruguaio que nos provoca tanta admiração e inveja. Sem buscar a inovação, Azevedo investe num humanismo sóbrio a partir da história de um homem idoso perdendo a visão, enquanto busca manter sua autonomia.

A cena inicial, entretanto, provoca o receio de que o filme embarque nos estereótipos da representação da cegueira no cinema: planos borrados, profundidade de campo reduzida, luz superexposta. Ora, esta cena nos reserva outro significado: quando Ramiro (Júlio Andrade) apresenta o apartamento do pai a possíveis compradores, na expectativa de que o homem idoso passe a morar consigo, a câmera permanece junto a Ernesto (Jorge Bolani). O desfoque ao fundo, neste caso, serve menos para representar a perda de visão do protagonista do que para separá-lo do filho, ressaltar o abismo entre ambos, explicitando não aquilo que o homem idoso não é capaz de ver, mas aquilo que ele não deseja ver. O procedimento estético é abandonado em seguida. Aborda-se, enfim, várias formas de cegueira ao longo desta narrativa em que o protagonista percebe muitas coisas que não passam pelo olhar, enquanto enxerga outras que prefere ignorar.

Para um longa-metragem passado majoritariamente dentro de um apartamento, o resultado se prova dinâmico, por explorar muito bem o imóvel enquanto personagem. Azevedo aposta numa decupagem “invisível”, ou seja, acompanhando Ernesto e Bia (Gabriela Poester) de maneira discreta, privilegiando planos de conjunto, porém sem se limitar ao academicismo de planos e contraplanos. A direção de fotografia demonstra cuidado com as luzes que entram pela janela, enquanto a montagem fornece desconforto e contemplação por meio do silêncio. Nos passeios pela rua, ou durante uma bem-vinda incursão de Ernesto pela vida noturna da cidade, a linguagem se torna mais despojada, fortalecendo o contraste entre a segurança dos espaços internos e a impressão de risco representada pelas ruas.

Os melhores momentos se encontram no delicado equilíbrio de forças entre Ernesto e Bia. Eles apreciam a companhia alheia, mas também abusam do afeto e dos recursos que têm a oferecer um ao outro, até o desenvolvimento de uma relação de dependência. Através do encontro com a jovem progressista, como ele mesmo foi em sua juventude, Ernesto estabelece um embate permanente, porém delicado, entre as gerações, entre as concepções da arte e da comunicação. A transmutação das cartas, entre linguagem oral, escrita e videografada, adquire um caráter orgânico à medida que a diretora permite releituras múltiplas de cada carta, em novas vozes. Sem defender o romantismo da correspondência epistolar, nem a inevitabilidade da tecnologia digital, o roteiro encontra um espaço de convivência entre opostos, exatamente como propõe aos personagens.

Nem tudo são flores, é claro, em Aos Olhos de Ernesto. Uma cena envolvendo o namorado de Bia soa exagerada em termos de tom, e os arranjos rumo à conclusão apontam para um otimismo utópico demais o registro naturalista adotado até então. No entanto, pela capacidade de trazer o mundo para dentro da casa de Ernesto (o retrato da crise econômica, a transformação da dicotomia esquerda-direita no século XXI, questões étnicas, de gênero e sexualidade), e pela qualidade de trabalho dos atores, constitui um produto muito coeso em termos de linguagem e discurso, em conjunção com um roteiro bastante polido. Jorge Bolani, no papel principal, demonstra sua ampla versatilidade, tanto para o humor quanto o drama. Gabriela Poester, com seus grandes olhos e composição bruta, fornece bom contraste ao protagonista. Enquanto isso, Júlio Andrade ganhas poucas, porém ótimas cenas (inclusive um comovente momento em silêncio) e Áurea Batista confere humanismo à figura habitualmente paródica da empregada doméstica de fala popular e espontânea.

Dentro do circuito comercial, o projeto virá a desempenhar um papel importante, outrora ocupado pelo próprio colaborador de Ana Luiza Azevedo, e corroteirista deste filme, Jorge Furtado: o de apresentar filmes brasileiros de alta qualidade técnica e narrativa, numa posição intermediária entre as pressões popularescas das comédias televisivas e a experimentação de linguagem (muito importante, é claro) do circuito “de arte”. Aos Olhos de Ernesto é capaz de unir os idosos e os jovens, os homens e as mulheres, os brasileiros e os uruguaios, o cinema de estúdio e o cinema de invenção. Que venham mais projetos como esse.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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