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Sinopse

Quando o bando de Jesuíno invade a cidade de Sertânia, Antão é ferido, preso e morto. O filme projeta a mente febril e delirante de Antão, que rememora os acontecimentos.

Crítica

É preciso muita coragem para fazer um filme com esta proposta e esta estética partindo de uma produção tão grande, nos dias de hoje. Sertânia é inteiramente construído em preto e branco, porém sem a elegância esperada da (direção de) fotografia histórica: as imagens superexpostas têm sol demais invadindo o enquadramento, movem-se para cantos inesperados, perdem o rosto dos personagens de vista. A ideia do calor e da desorientação no espaço seco do Nordeste é muito bem retratada pela câmera errante. Além disso, a narrativa é labiríntica: começa-se pela morte de Antão (Vertin Moura), sem sabermos em que circunstâncias. Depois a história se aventura pelo passado, pela infância do personagem, e volta ao presente, retratando a morte diversas vezes. Cada retorno ao corpo agonizante possui um novo significado, porque conhecemos melhor a identidade do protagonista. Primeiro morre o corpo de um homem, depois, morre o cangaceiro traído pelo compadre, e em seguida, morre o órfão de pai e mãe, traumatizado pelas ausências familiares.

Sertânia transborda de ideias. Poderia ser considerado uma obra de cineasta jovem, do tipo que deseja incluir estilos e conceitos demais num único filme. Ora, trata-se de um projeto de Geraldo Sarno, diretor de 81 anos de idade, autor, entre outros, do curta-metragem Viramundo (1965), que também abordava fluxos migratórios e a busca pelo pai em paralelo com a busca por um conceito de nação. Cinquenta e cinco anos depois, Sarno retorna ao tema, com reflexos diferentes em um Brasil fraturado, pós-ditadura militar, pós-reconstrução democrática, pós-ruptura da alternância republicana entre direita e esquerda, e pós-golpe de 2016. O valor do Nordeste na construção do imaginário do Brasil se transformou, o valor do cinema ousado e radical, também. O diretor resgata não apenas o filme de sertão, o cangaço e o western, mas também as vanguardas dos anos 1960, os delírios messiânicos de Glauber Rocha; um cinema que grita, que se repete em frases e imagens, fornecendo ao espectador uma vertigem equivalente àquela de seus personagens. Trata-se de uma obra profundamente estilizada, que em nenhum momento esquece a trama e o discurso político ao qual serve.

Assim, cada cena traz uma possibilidade de experimentação nova. A imersão de Antão no cangaço é representada pela sobreposição de imagens do sertão sobre o rosto dele. Uma câmera subjetiva do personagem, olhando para o líder Jesuíno (Júlio Adrião) abandona o olhar de Antão e se torna uma câmera externa, no mesmo plano, assim como em Os Incompreendidos (1959) de François Truffaut. Subitamente, imagens de arquivo apresentando a modernidade das cidades se misturam com a captação contemporânea, em registro coeso devido à luz estourada e ao preto e branco profundo, que aproxima o desgaste da película antiga ao contraste profundo do digital contemporâneo. Um número musical dentro de ruínas (“No céu, com minha mãe estarei”) e o garoto observando discretamente a câmera enquanto pega um pedaço de pão são deslumbrantes. A narração da profunda tristeza de Jesuíno ao descobrir uma garota cega, surda e muda pelos olhos de Antão – ou seja, Antão olha Jesuíno que olha a garota, que não olha ninguém –, dentro de um único plano, atinge uma expressividade estupenda.

Para cada plano questionável, algo esperado dentro de um filme que atira em tantos alvos diferentes (vide a sequência da garota nua, desesperada), existem meia dúzia de cenas magníficas, profundamente criativas, sem freios nem preocupação de agradar. Sertânia ousa ser incômodo, mas em momento nenhum deseja chocar, como talvez fizessem os diretores inexperientes. Contra a construção fatual da vida e morte de Antão, efetua uma investigação psicológica profunda do personagem em sua adoração pela mãe morta, sua mistura de saudade e raiva do pai que o deixou tão cedo, a identificação paterna com Jesuíno, a incapacidade de se relacionar com mulheres. Não há qualquer forma de idealização nesta figura multifacetada, que atravessa a História à medida que a História o atravessa. A descoberta política do personagem sobre a pobreza do povo permite que o protagonista conceba, enfim, a possibilidade de não servir nem ao aparelho do governo, nem às forças do cangaço. “O povo não tem culpa de passar fome!”, ele grita diversas vezes a Jesuíno, ao mundo e a si mesmo, como se acabasse de perceber esta evidência. Existe possibilidades de posicionamento entre opressões distintas, existe a possibilidade de autocrítica e de reinvenção de si, cobranças tão comuns no cenário político do século XXI. Antão, homem fraturado e morto por suas convicções, soa tão pertinente ao sertão mítico quanto ao Brasil atual.

Ao mesmo tempo, a obra jamais deixa de lembrar o espectador que se trata de um filme, uma ficção, uma construção. Quando ameaça se tornar imersivo demais, linear e narrativo, Sarno permite que a montagem escancare arestas, sujeiras, “erros” destinados a manter o processo dinâmico. A câmera se revela durante as filmagens, enquanto os atores, ainda em seus personagens, afirmam: “Parecia uma espécie de teatro”. Em outra cena, Júlio Adrião, ator magnífico, dispara vários tiros contra moradores locais, fora de quadro, até a arma emperrar. Ele para de atuar, desconstrói o corpo de cangaceiro, muda radicalmente a voz e se torna, novamente, Júlio Adrião, perguntando à equipe como arrumar a espingarda. O abismo entre personagem e ator é espantoso, e evidenciado por um único plano, ao mesmo tempo diegese e making of, representação e metalinguagem. Ajuda muito o fato de os personagens serem, em si próprios, diretores de duas cenas: Jesuíno cria personagens ao batizar e rebatizar Antão ao longo da trama; dispõe os corpos ao seu redor ao atirar em vários, para depois observar a “arte” dos cadáveres no chão; senta-se numa mesa em estilo Santa Ceia; coordena onde os demais personagens devem estar, e o quanto devem pagar, para não serem mortos. O autoritarismo destes homens se converte em mise en scène: são eles que controlam a disposição dos personagens no espaço, pelo tempo desejado.

Como se não houvesse elementos de admiração suficientes, este filme histórico, político e metafórico ousa enveredar pelo fantástico, com um retrato do mundo dos mortos. A belíssima cena escancara a ironia dos homens que se acreditam capazes de tudo, porém depois se tornam tão frágeis quando confrontados a um poder maior. Antão, driblando a ordem natural das coisas, invade o além, apenas para procurar o pai e concluir o luto que o corrói. Rumo ao final, mais uma ruptura: Sarno envereda pelo sertão contemporâneo, comparando os rostos de pessoas comuns da década de 2010 com os rostos dos cangaceiros fictícios. A ficção encontra o documental enquanto o real observa diretamente a câmera, sem objetivo preciso, apenas pela equivalência do olhar. Os rostos de nordestinos atuais encaram nossos rostos enquanto espectadores, de maioria sudestina e de recursos suficientes para ter acesso ao cinema. Os rituais de honra e os vestuários de antes se contrastam com o folclore de hoje, através da representação festiva do caipira inofensivo. A História transforma a memória (ou seria o contrário?), ao passo que o cinema transforma o referencial (ou seria o contrário?). “Eu terei passado a vida inteira me questionando sobre a função da lembrança, que não é o oposto do esquecimento, e sim o seu inverso”. A frase de Sem Sol (1983), de Chris Marker, ajuda a refletir este filme imenso e absurdo que é Sertânia, incursão pela política do Brasil, da memória e das imagens.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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