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Crítica

Por mais que as investigações da Lava-Jato estejam associadas à prisão de políticos e empreiteiros, o roteiro de Três Verões trata de lembrar que as consequências vão além do setor privilegiado da sociedade. Famílias e dependentes dos investigados sofrem as consequências, o que inclui o quadro de funcionários. Nesta curiosa mistura de comédia e drama, a diretora Sandra Kogut decide investigar a corrupção no Brasil, orquestrada pelas altas classes, transbordando até afetar um pequeno grupo de caseiros e faxineiras de uma mansão à beira mar onde Edgar (Otávio Müller) e Marta (Gisele Fróes) costumam passar o fim do ano. Quando o patrão é preso, o que será dos trabalhadores dependentes daquele lugar?

A intenção de enxergar as sequelas dos esquemas criminosos, ao invés da origem destes, pode representar uma intenção louvável, especialmente por sublinhar o prejuízo a pessoas inocentes. No entanto, a principal surpresa diante deste projeto se encontra na representação dos funcionários liderados por Madalena (Regina Casé). Ao longo de três anos, entre 2015 e 2017, o pequeno grupo é visto como alegre, inocente, tolo e um tanto ignorante em relação ao mundo. Eles se contentam em arrumar as festas sorrindo, limpar a piscina brincando, cuidar dos idosos com boa vontade. Quando o escândalo de corrupção eclode, não demonstram qualquer interesse na história em si, apesar do envolvimento dos patrões. Eles não possuem opiniões próprias, limitando-se à rotina automatizada de tarefas executadas com uma servilidade gentil. “Você me irrita com a sua alegria”, afirma, com razão, o avô doente.

Madalena comanda o casarão, e também a narrativa. Ela é os olhos e o coração da casa, mas não o cérebro. Quando percebe homens ricos e desconhecidos tentando comprar o seu telefone velho, não desconfia das intenções. Quando descobre múltiplas ligações escondidas no celular do patrão, tampouco contesta. Madá está preocupada demais em tirar selfies divertidas para colocar nas redes sociais, fazer piadas com as taças de champanhe que não lhe pertencem e com as obras de arte que não compreende. Os diálogos são saturados de piadas que não fazem a trama avançar: trata-se de um humor autorreferente, que se esgota em si mesmo, não proveniente da linguagem cinematográfica nem da situação específica, apenas da vontade de fazer rir num momento específico (Madá cria “sushicha”, mistura de sushi e salsicha, por ter nojo de peixe cru).

Deste modo, o espectador não é convidado a rir com eles, mas rir deles. Madá e seus amigos são ridicularizados – de modo paternalista, certo, com um sorriso no rosto e um tapinha nas costas, mas ainda assim, ridicularizados. Os funcionários são vistos como pueris, resistentes a abusos e provocações. No momento em que uma equipe de filmagem toma o casarão para gravar uma peça publicitária (numa cena longuíssima e um tanto grosseira), os jovens membros da filmagem humilham a protagonista por sua “cara de pobre”, algo que ela percebe, critica, mas não contesta: Madá ainda aceita participar, com a mesma disponibilidade. Descreve-se estas pessoas enquanto limitadas intelectualmente, sem ambições, e cuja única experiência pessoal é reduzida à descrição de uma tragédia e à vontade grotesca de colocar um tobogã e uma piscina em frente a um quiosque de pães de queijo. Eles não se inserem na sociedade, não têm família, nem existem politicamente.

“Mas se trata de humor”, pode-se alegar, o que é inegável: durante boa parte da trama, os segmentos se assemelham a esquetes independentes de um programa humorístico. O principal questionamento diz respeito ao discurso obtido a partir desta comicidade, ou seja, seu ponto de vista. Em algum momento se problematiza a representação parcamente civilizada das classes populares? Quando o horizonte de liberdade de Madá se limita a ver os fogos de Ano Novo do quartinho de empregada, ao lado da máquina de lavar, existe crítica à imobilidade social, ou se transmite a impressão de que a personagem está feliz assim? Quando se inclui tantos termos em inglês, em pronúncia errada pela personagem, estamos criticando a falta de acesso à informação, ou apenas nos divertindo com a suposta ignorância dos pobres? Quanto à corrupção, tema permanente, porém deixado em pano de fundo, o que ela nos diz sobre o Brasil atual, para além da caricatura “patrão rico e malicioso versus empregado pobre e inocente”?

Outro elemento pesa em desfavor de Três Verões: a escolha de Regina Casé para o papel da caseira e protagonista. Não se entenda errado: a atriz é muito boa para comédias, e os sucessivos momentos cômicos funcionam graças à destreza de Casé com diálogos, seu despojamento do corpo e das expressões, e as conversas em tom de improviso. Entretanto, sua escolha enquanto representação máxima das classes populares, pouco tempo após Que Horas Ela Volta? (2015), desperta inevitáveis comparações com este drama muito mais respeitoso e complexo politicamente. No filme de Anna Muylaert, o microcosmo da casa burguesa partia da harmonia tácita da exploração capitalista a um germe de enfrentamento e revolução. No projeto de Kogut, permanece-se no estágio da constatação de personagens sem qualquer disposição à emancipação ou consciência de classe. Faltou a chegada de alguma Jéssica (Camila Márdila) para retirar os protagonistas de sua inércia.

Por fim, o filme investe num recurso poético gasto: a leitura de uma carta em off resolvendo a situação e apontando para novos rumos aos personagens. Para ser justo, este está longe de ser um problema específico de Três Verões – ele é apenas mais um entre dezenas de dramas nacionais recorrendo à mesma ferramenta. No entanto, a narrativa se conclui com a aparência de que os três anos (2015, 2016 e 2017) se sucedem sem realmente se comunicar e/ou provocar uma transformação na trajetória da heroína. Em relação aos funcionários do casarão, somos convidados a sentir desdém ou pena (vide a narração da tragédia, pelo enquadramento conveniente do cinema publicitário). No que diz respeito à corrupção, somos privados de qualquer reflexão a respeito. A comédia dramática posiciona os caseiros, faxineiros e cozinheiras numa bolha de ignorância, literalmente distante dos fatos, e o espectador permanece com eles, ajudando a limpar a neve falsa de um spot comercial absurdo, enquanto o mundo queima lá fora.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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