Crítica
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Sinopse
Uma mulher, de uma comunidade de pescadores no Ceará, tem 26 filhos. O nome de cada filho corresponde a uma letra do alfabeto. Ela decifra o futuro a partir deles, da chegada de um misterioso barco e de uma mulher que vem pelas águas. O destino dessa comunidade será alterado por esses acontecimentos.
Crítica
Bastou um pequeno sinal de mudança para que o hoje fosse revirado. Ao menos foi assim que se sucedeu com A, filho da mulher que já foi mãe 26 vezes. Uma vez tendo descoberto uma cartilha, objeto estranho ao seu cotidiano, ela decidiu batizar cada criança que ia nascendo com uma das letras pelas quais havia se encantado. Ele, portanto, foi o primogênito, com quem tudo começou, aquele que deu início a uma rotina que permanece imutável, tantos anos tendo se passado. Homem feito, não se impressiona com pouco. Por isso, não seria um alterar dos ventos ou uma elevação da maré suficiente para obrigá-lo a ver no horizonte um destino diferente daquele que lhe é natural. Foi, pois sim, uma mulher, que surgiu do nada, como fruto da pescaria. Ainda que sem O Barco pelo qual tanto anseia, dono de um mundo que se encerra em suas possibilidades.
A trama escrita e dirigida por Petrus Cariry, seu primeiro trabalho após a conclusão da Trilogia da Morte (O Grão, 2007 – Mãe e Filha, 2011 – Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, 2015), é baseada no conto homônimo de Carlos Emílio Corrêa Lima. E se deixa de lado o elemento da premente finitude do ser humano, ao menos assim faz não se dissociando por completo da filmografia do seu realizador. Seguimos diante de ambientes claustrofóbicos em céu aberto, substituindo áridas regiões do interior pela beira da Praia das Fontes, no Ceará, onde as filmagens ocorreram. Ali moram a mulher e seus filhos, isolados de tudo e todos, tendo como companhias apenas o pai (“que já não fala mais”), o cego (“que conhece bem o presente que ainda não aconteceu”) e a recém-chegada (“que conta histórias de sedução, mas tudo que quer é sobreviver”).
Raras foram as vezes em que presenciamos em nosso cinema o uso tão assumido de referências clássicas, porém sem se tornar submisso a elas. O que o diretor faz é jogar com estas noções a favor da narrativa, e não emprisionando-a em limites pré-estabelecidos. Da caverna de Platão ao conto de Sherazade, Cariry é hábil em partir de contextos conhecidos para criar algo novo, sem abrir mão, no entanto, de um ambiente pelo qual se sinta familiarizado. A chegada dessa estranha, que veio do mar sem dizer como e nem para onde, mexe com A como nada antes. Seu universo se expande a partir desse contato. E se alguém pode vir até eles, quem negaria que o mesmo também não poderia ocorrer no sentido inverso? Para tanto, tudo o que precisa é saber como fazer isso. Por isso, o barco. Restaurado, lhe levará até onde apenas sonhou, num misto de fantasia e devaneio, agora mais possível do que nunca.
Caro é o preço que tem que assumir para manter essa decisão em mente. A mãe renega a ideia, o pai é mudo diante dos argumentos do rapaz, e a única voz aparentemente sábia é a do cego, que diz: “com o barco poderá passar o limite das ondas, e ir até onde estão os peixes maiores, mas ao invés de comê-los, serão eles que o comerão”. Há o perigo evidente de se aventurar por caminhos não conhecidos, é claro. Mas é mais do que isso. Pois se você só tem aquilo que consegue ver, e com isso se satisfaz, assim está bem. A partir do momento em que começa a querer mais, e ir atrás disso, um movimento tem início e nunca mais terá fim. Depois do A virá o B, e seguindo esse vem o C, apenas para abrir espaço para o D. Quando se percebe, nada – nem ninguém – existe mais. Todas as letras acabaram, e o resto é apenas poeira.
O Barco é enxuto em sua realização, e mesmo que entregue o que pretende somente após exigir o preço à altura destes esforços, assim o faz com parcimônia e exatidão. Rômulo Braga, como A, é uma força da natureza, guardando sensações em si que podem ser apenas imaginadas, nunca sentidas. Veronica Cavalcanti, como a mãe, é o outro lado desse mesmo equilíbrio, aquela que ameaça para não perder, que teme ao descobrir, que sofre pelo que é eminente. Petrus Cariry sabe que meio caminho para alcançar o que se busca é reunir as peças certas do quebra-cabeça. Justamente o que faz, agrupando o necessário e deixando que cada uma cumpra a sua função. Talvez hermético demais para alguns, possivelmente abrupto para outros. Nunca, no entanto, desprovido de significados. Pois é disso que faz essa jornada, um processo de conhecimento e descoberta, tanto em cena quanto no lado de cá da tela.
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