Sinopse
Em O Castigo, deixado um pouco de castigo por mau comportamento, o filho de Ana e Mateo desaparece. O casal precisará enfrentar vários sentimentos, tais como o medo e a culpa, para tentar encontrar o garoto entre a floresta e a estrada. Indicado ao Prêmio Platino 2023.
Crítica
Fazer um filme em plano-sequência impõe desafios. Sem a possibilidade de repartir a trama em planos depois unificados, o realizador perde as competências da montagem (transições, contração e dilatação do tempo, etc.), além de precisar coordenar elenco/técnica numa coreografia afinada. Para muitos realizadores, trata-se de uma espécie de desafio a ser vencido, de tarefa a ser (ao menos) uma vez encarada. Em O Castigo o cineasta chileno Matías Bize utiliza os potenciais do tempo real nessa trama que acontece em torno de uma ausência. Ana (Antonia Zegers) e Mateo (Néstor Cantillana) começam o filme preocupados por causa do não retorno do filho da floresta à beira da estrada. O homem parece mais nervoso/inquieto, pois manifesta de modo mais incisivo o seu desespero em virtude do inesperado sumiço. A mulher assume uma atitude/postura menos alarmista, apostando que a criança logo aparecerá. Os dois são vagos a respeito do que aconteceu, de como o garoto saiu do carro durante uma viagem e acabou embrenhado numa área perigosa, inclusive, pela presença de pumas. Aos poucos, informações são compartilhadas com o espectador, ainda mais à medida que a polícia é acionada para ajudar nas buscas. A câmera segue os personagens indo e voltando da mata fechada, cenário tantas vezes utilizado no cinema como reduto imprevisível, um lugar onde vários mistérios se alocam.
O Castigo utiliza um dispositivo parecido com o de A Aventura (1960), obra-prima de Michelangelo Antonioni, que também mostra o desaparecimento de alguém, ou seja, a ausência, para instaurar o mal-estar. Mas, talvez seria melhor, nesse sentido, colocá-lo ao lado de À Procura de Elly (2009), de Asghar Farhadi, pois nele igualmente o sumiço engatilha tensões que aparentemente estavam cobertas pelos véus da rotina. O fato de a criança não ser localizada e de os gritos ecoarem pela floresta sem resposta começa a criar um clima pesado que traz à tona diversas insatisfações matrimoniais. Especialmente Ana vai num crescendo de pequenas explosões que colocam em evidência o seu desgosto. Ela se diz farta de encarnar a megera que coloca limites enquanto o marido assume uma atitude bem mais complacente, posição que o coloca numa espécie de vantagem emocional aos olhos do pequeno. Na medida em que a trama avança, marcada por uma série de repetições que visam instaurar a sensação de “nada está acontecendo, enquanto internamente muito está fervilhando”, ganha corpo o protagonismo de Ana, mais especificamente essa espécie de autorização que o drama lhe dá para falar coisas aparentemente indizíveis, como o fato de não gostar do papel de mãe e de intimamente chegar a pensar que sua vida seria melhor sem a criança. No entanto, esse tema apenas explode no fim.
A intenção de Matías Bize com o plano-sequência é bem clara: capturar a intensidade dessa dinâmica contínua e com isso também enfatizar particularidades do tempo real. Diferentemente do que o colega iraniano fez em À Procura de Elly – thriller que utiliza os desgastes ocasionados pela passagem das horas e a própria escassez de tempo para manter a tensão –, o chileno não consegue imprimir a apreensão quase inerente ao plano-sequência. Tirar do horizonte a montagem e seus artifícios (como e elipse, por exemplo) evita que a percepção do tempo seja mais subjetiva, até porque os personagens vivem falando dos minutos decorridos. Portanto, o plano-sequência cria uma noção até confortável ao espectador, a de sabermos com relativa exatidão quantos tempo se passou do inesperado desaparecimento até a resolução desse pequeno/grande conflito familiar. Bize não tenta embaralhar essa noção cronológica para somar angústia às discussões matrimoniais engatilhadas pelo sumiço do menino. Outro efeito colateral não tão positivo da utilização do plano-sequência, nesse caso, é certo engessamento da mise en scène em prol de alguns protocolos práticos de filmagem. Transitando por um cenário relativamente controlado (idas e vindas na floresta) Bize às vezes deixa visível esta sensação de que está concentrado em algo para o entorno se preparar à próxima incursão da câmera por ali.
O Castigo cresce muito quando as animosidades entre o casal se tornam incontornáveis. E esse valor atinge o seu ponto vital assim que Ana desabafa tudo aquilo que lhe angustiava o peito, entrando num terreno que felizmente está sendo tratado ultimamente com menos estigmas: a (des)romantização da maternidade. Bize alça voos maiores quando deixa de chamar atenção à abordagem em plano-sequência (que nem representa uma proeza técnica tão fascinante por conta do cenário controlado, entre outras coisas) e permite aos atores entrarem em campos cada vez mais obscuros das personalidades desses protagonistas sugestivos de uma construção social. Mateo é paulatinamente destituído do pedestal de “sujeito sensato” ao qual foi elevado de modo engenhoso no começo do filme. Por sua vez, Ana ganha mais espaço para verbalizar as insatisfações como esposa e mãe, provavelmente libertada dessas posições socialmente tipificadas em contato com o sofrimento. No fim das contas, ela é quem tem a coragem para romper com os lugares-comuns relativos aos papeis de mãe e esposa, para derramar naquela situação um jorro de lava vulcânica capaz de mexer efetivamente com as estruturas. É nesse ponto que o filme brilha, o que justifica o crescendo de ansiedade diante da ausência capaz de extrair coisas profundas de pessoas convidadas à rotina. Mas falta “eletricidade” no processo.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
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