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Sinopse

Alice é uma adolescente trans cheia de carisma que investe seu tempo fazendo vídeos para o Youtube. Um dia, seu pai é transferido do Recife para Araucárias do Sul, e precisam se mudar. Na nova escola, a garota enfrenta preconceitos ao se deparar com uma sociedade mais retrógrada do que estava acostumada. Seu desejo é dar o primeiro beijo mas, antes, quer o direito de ser quem é.

Crítica

Existem mais corpos do que você imagina, mulher com pinto e homem com vagina”. É com essa frase que Alice Júnior abre a sua narrativa. Não por acaso, a pichação se encontra no muro do edifício Aquarius – aquele mesmo, habitado por Sônia Braga no filme do Kleber Mendonça Filho. Estamos na praia da Boa Viagem, em Recife, e a referência ao longa de resistência e militância cultural não é gratuita. Afinal, por aqui ela serve também para indicar os próximos caminhos a serem seguidos. Afinal, a personagem-título, interpretada pela revelação Anne Celestino, é uma menina trans – assim como a atriz. E o que se verá na próxima uma hora e meia, em um tom que brinca com signos digitais e uma trajetória que se aproxima da fabular, é um faz de conta nada diferente de outros tantos vistos antes, com uma única – e muito importante – diferença: a identidade sexual de sua protagonista. É o pequeno detalhe que acaba por oferecer um novo significado à toda obra.

Quantas vezes a história da nova aluna recém-chegada a um colégio que lhe é estranho já não foi levada às telas? Pois bem, é exatamente isso que aguarda pelo espectador de Alice Júnior. Ex-finalista de um reality show e dona do seu próprio canal no youtube, Alice é obrigada a se mudar da capital de Pernambuco para a pequena – e fictícia – Araucárias do Sul, no interior do Paraná, quando o pai (Emmanuel Rosset) se vê diante de uma oportunidade de trabalho que há tanto aguardava. Como são apenas os dois – e por ser uma adolescente ainda menor de idade – se vê obrigada e acompanhá-lo no processo. Sua preocupação, até então, era lidar com o contato dos fãs no ambiente virtual e com outras questões comuns da idade, como a expectativa pelo primeiro beijo. Neste cenário desconhecido, no entanto, se verá tendo que enfrentar comportamentos que geralmente são mais abafados numa cidade maior, como preconceito, misoginia e ignorância.

Essa é a chave que o diretor Gil Baroni emprega para transformar seu filme quase num manual de como se relacionar com a colega transexual. A todo instante passam a surgir discursos sobre “é travesti ou transexual?”, “vai no banheiro masculino ou no feminino?”, “usa o nome social ou a identidade de batismo?”, e por aí vai. Não que esteja errado, veja bem – muita gente precisa, mesmo, ser educada nesse sentido. No entanto, tamanha reverência a esse tipo debate, por mais que haja um esforço visível para inserir essas dúvidas de forma natural, na maioria das vezes ocorre exatamente o contrário, com os personagens simplesmente interrompendo a ação que lhes compete para oferecer ‘uma aula rápida de cidadania’. Socialmente relevante, mas problemático enquanto ficção. Afinal, apenas a presença de Alice já deveria ser suficiente para que tais questionamentos fossem tratados a partir de uma abordagem menos impositiva e mais fluida, sem tantas interrupções. Por outro lado, o contexto interiorano que a trama assume se esforça para amenizar esses ruídos.

Tudo o que ocorre com Alice a partir de sua chegada no novo lar segue a cartilha das produções do gênero: é excluída, sofre bullying, faz amigos entre outros marginalizados, consegue dar a volta por cima e acaba conquistando a simpatia da maioria. Não apenas por ser diferente, mas por assumir suas particularidades. Ela também se apaixona, e nesse ponto o filme abre espaço para uma interessante discussão que, infelizmente, não é desenvolvida com muita propriedade: seu interesse recai em Bruno (Matheus Moura), que namora Taísa (Surya Amitrano), mas logo fica evidente que é essa que está a fim de Alice. Poderia se investir mais nesse triângulo amoroso, até assumindo posicionamentos mais radicais, mas não estamos diante desse tipo de filme: o tom é de conto de fadas, literalmente com coraçõezinhos e outros grafismos coloridos surgindo na tela a todo momento para oferecer um maior dinamismo à história. Assim, tangencia-se algumas polêmicas, sem, no entanto, mergulhar de cabeça em nenhuma delas.

Entre o mundo de faz de conta que Alice Júnior oferece – um posicionamento que pode ser visto até mesmo como perigoso, ainda mais em um país como o Brasil, recordista no assassinato da população LGBT – e a decisão de propor transformações graduais, sem enfrentamento, mas com exemplos positivos e discursos militantes, o filme acaba resultando em um bonito episódio de Malhação (1995-), fácil de se assistir e com poderosas mensagens, mas leve onde, talvez, precisasse ser mais contundente. Ao deixar claro que pretende agradar a todos, sem constranger ninguém, soa como um convite ao debate e à troca, sem encerrar nenhuma discussão que aqui possa ter sido levantada. Funciona enquanto está na tela, mas não perdura na memória, nem entre os interessados pelo tema, e muito menos junto àqueles meramente curiosos ou que deveriam vivenciar com maior apego a realidade aqui ilustrada. Tem sua função e a cumpre com competência, ao mesmo tempo em que se mostra ingênuo em seus olhares e até mesmo irrelevante como agente de mudança.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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