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Sinopse

Logo após a abolição da escravatura no Brasil, os fantasmas de um passado recente de dor e sofrimento ainda vagam entre os vivos. A loucura bate à porta das mulheres da família Soares tão logo elas precisem abrir mão de privilégios e se adaptar a uma nova realidade.

Crítica

Este drama se revela bastante astuto no debate sobre os rumos do país. Para pensar o Brasil atual, em vias de uma nova ruptura democrática ao favorecer grupos autocráticos, os diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra buscam um espelhamento em outra virada essencial da nossa História: a passagem do século XIX ao século XX, quando se fundou a República, cerca de dez anos após a abolição da escravatura. Os dois momentos, separados em mais de 120 anos, simbolizam conclusões de uma era, o colapso de um modelo político e social. Todos os Mortos (2020) combina os elementos que pereciam literal ou simbolicamente naquela época: morriam os últimos barões do café, morria uma geração de escravos libertos, definhava a cultura do café, desaparecia a noção de Império. No entanto, apesar dos abismos sociais, o roteiro busca um curioso paralelismo: tanto na rica família branca quanto na pobre família negra que a serve, os homens estão ausentes, deixando as mulheres sozinhas para cuidarem dos filhos e da casa. Enquanto elas esperam o retorno da figura patriarcal, atravessam como fantasmas suas existências decadentes.

O filme oferece interessantes metáforas, ousadas por seu enfrentamento de feridas históricas: a cena em que Iná (Mawusi Tulani) efetua rituais de matriz africana dentro do casarão onde trabalhava, diante de uma baronesa e de uma freira, representa uma afronta interessantíssima do ponto de vista simbólico, como se todo o Brasil se chocasse dentro daquela sala: brancos e negros, cristãos e pagãos, aristocracia e servidão. Em outro momento, a homossexualidade de um personagem é lançada de modo claro, porém discreto, como mais um dos fantasmas que percorrem o filme. Não por acaso, a filha Ana (Carolina Bianchi) alucina – ou seria a única pessoa lúcida? Ela consegue enxergar os fantasmas de escravos mortos que transitam pelo casarão e se recusam a ir embora. Esta invisibilidade porta o real conflito do projeto: os traumas não resolvidos do passado brasileiro. No momento em que a câmera adota o ponto subjetivo destes mortos-vivos invisíveis, reivindica-se uma reparação simbólica, compartilhando com o público a possibilidade de enxergar Ana e a irmã Maria (Clarissa Kiste) à distância, apavoradas, diminuídas pela amplitude dos cômodos. Enxergamos a História também pelos olhos dos vencidos.

A decisão de dividir a narrativa em capítulos relacionados aos anos de 1899 e 1900 ressalta tanto a importância deste período quanto a inatividade dos protagonistas diante da catarse social. “Independência”, “Finados”, “Natal” e “Carnaval” constituem marcos em que o Brasil saiu das casas e foi às ruas. No entanto, a família central da narrativa – e a câmera, junto dela – jamais abandona os espaços internos. Sabemos que o país está mudando pelos letreiros e pelas sugestões de trens construídos pela cidade de São Paulo, porém os diretores preferem abordar as transformações por omissão, ou seja, através de um raro núcleo reacionário (no sentido estrito do termo), que recusa a transformação o quanto pode. Todos os Mortos encontra uma estética igualmente inerte para representar a família: praticamente todas as cenas consistem em duplas ou trios conversando nos terços exatos de um enquadramento fixo e frontal. Não há muita dinâmica, nem da câmera, nem das ações dos personagens. O filme depende demais das explicações verbais para se desenvolver.

Esta aposta arriscada poderia render bons frutos caso os diálogos fossem carregados de ironia, ou de variações de intensidade e estilo. Ora, todas as falas ostentam um excesso de decoro, assemelhando-se a textos declamados. É certo que, em 1899, a sociedade possuía um linguajar muito diferente do atual, no entanto, seria um equívoco confundir linguagem antiga com linguagem escrita. Mesmo naqueles tempos, havia maneiras mais corriqueiras de se expressar, com entonações fluidas que transmitissem provocação, deboche ou malícia. No entanto, os diretores preferem condicionar o seu elenco para falas excessivamente formais, onde cada sílaba é articulada em excesso, e cada vírgula ou ponto final se converte numa pausa dramática. É difícil imergir num contexto tão dependente de falas que jamais soam verossímeis, seja pelo tom, seja pela necessidade de explicar o tempo inteiro algo que ambos personagens já sabem – “Fazia tanto tempo que você não cantava para Matamba!”, o filho afirma à mãe, que sabia muito bem dessa informação, ou “Nosso pai nunca deixou você fazer nada”, diz uma irmã sobre as restrições que a outra conhece muito bem. Mesmo uma importante agressão é retratada em linguagem indireta, ao invés de mostrada pelas imagens.

Talvez a melhor ideia de mise en scène provenha dos lentos zooms aplicados apenas aos rostos dos personagens negros, como se a câmera quisesse escutá-los com atenção, aproximar-se deles. Já a família branca permanece nos quadros estáticos e clássicos que lhe convêm. Os momentos de cantos das mulheres negras – com destaque para a bela cena inicial – também constituem uma importante tomada de partido da direção. O filme aposta numa estrutura excessivamente linear, sem uma única cena que se sobressaia às demais em termos de ritmo ao longo de mais de duas horas, o que solicita esforço do espectador em termos de imersão. Fosse mais dinâmico ou catártico – e, sobretudo, menos empostado verbalmente -, Todos os Mortos proporcionaria um discurso ainda mais potente sobre a nossa História. Mesmo assim, representa a importante transição entre a escravidão institucional e a cordialidade hipócrita do século seguinte, do tipo que viria a decretar, em livros famosos, que nós brasileiros “não somos racistas”. O pequeno aceno aos dias de hoje – interessante momento de loucura e fantasia, que teria efeitos preciosos caso contaminasse o filme como um todo – serve para selar esta análise de um país que transformou sua estrutura sem progredir em seus valores.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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