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Sinopse

O romance adolescente de Silvia e Artur começa de forma abrupta e se interrompe de repente após um grave acidente. Silvia adoece e seus dias mergulham na escuridão. Pouco a pouco, o luto se transforma numa jornada obsessiva para trazê-lo de volta à vida.

Crítica

Há um jogo instigante no início de Sem Seu Sangue. A decupagem fragmenta corpos e espaços, não permitindo que contextos ofereçam portos seguros. Exemplo disso, a forma como a câmera captura individualmente os ocupantes da sala de aula, evitando abrir o campo de visão para termos a ideia exata do tamanho do lugar e da quantidade de gente ali. Silvia (Luiza Kosovski) é a narradora que começa revelando o momento-chave em que conheceu o enigmático Arthur (Juan Paiva), o novato ensimesmado da escola. Expulso das outras instituições de ensino, ele é um adolescente guiado por uma raiva incontida, fruto da ciência da condição de hemofílico. Mas, o adolescente afronta a própria fragilidade, arriscando a machucar-se. A cineasta Alice Furtado desenha com sensibilidade esse envolvimento, vide a bela cena de sexo que denota a ligação quase imediata dos enamorados. Adiante, perscruta o corpo do menino durante a aula de educação física como que emulando o ponto de vista da menina. É consistente essa noção de intimidade pretendida.

Outro traço positivo de Sem Seu Sangue é a construção narrativa porosa, da qual escoam mais sensações do que fatos. O tempo é borrado, indeterminado, ao ponto de não sabermos quantos dias se passaram entre uma circunstância e outra, o que aumenta a sensação de indefinição engatilhada pela maneira de enquadrar as pessoas. Há a tentativa de depurar o que, numa proposta diretiva mais comum, poderia ser talhado para gerar engajamentos emocionais com expedientes rasgados. A morte de Arthur é apresentada com um plano seco, frente ao qual podemos conjecturar – teria ele caído ao praticar skate, assim ferindo-se fatalmente ao manifestar-se? –, mas sem garantias. O filme não trata de certezas, mas de possibilidades cuidadosamente fomentadas, sobretudo, até ganhar ares de arrastada jornada de autocomiseração. Sim, pois depois do fatídico acidente, a realizadora nos convida a mergulhar no processo de depressão que acentua a apatia de Silvia. E nessa longa jornada, reincidências acabam tornando a experiência não necessariamente empática, mas dura.

A ida a uma ilha evoca a intromissão do fantástico nas franjas da história da menina que não consegue sair do pântano emocional imposto pelo luto. Luiza Kosovski mantém praticamente um semblante letárgico durante o filme inteiro, não o variando diante do turbilhão de emoções que atravessa sua personagem desde que ela conhece Arthur. O diálogo travado com a irmã do falecido é marcado pelo evidente desânimo da jovem em meio a um trajeto psíquico dilacerante, mas também pelo caráter empostado do texto designado para revelar o sonho. Não parece efetivamente que ela está quase num estágio de transe ao relembrar os contornos bizarros de sua experiência durante o sono, mas que o texto saiu demasiadamente declamado da interpretação da atriz. O resultado é uma artificialidade que compromete o empenho do espectador com a dor veementemente verbalizada. Obviamente, Alice pretende frisar a marcha íntima, a dificuldade de negociar minimamente com o sofrimento. Porém, até mesmo essa inércia de Silvia, que poderia ser angustiante, se torna algo repetitiva.

Especialmente na segunda metade do filme, o desgaste se dá pelo modo como Alice Furtado dispõe signos que apontam, direta ou indiretamente, ao fantástico. À medida em que trava conversas protocolares com os pais e o tio, e enrijecidas com os personagens de Digão Ribeiro e Nahuel Pérez Biscayart, Silvia entra de modo frouxo (à fórceps) num mundo pretensamente mágico, entremeado por histórias de gente encontrando a morte no mar e ocasiões não explicadas pela racionalidade. A menção a O Rio Sagrado (1951) parece mais a sinalização de uma inspiração quanto ao realismo poético compartilhado do filme de Jean Renoir do que necessariamente algo que funciona como indício e/ou gatilho. Curiosamente, o longa francês também é narrado por uma menina. Porém, tal perspectiva é justificada pelo fato de se tratar de uma europeia que foi morar na Índia depois da Segunda Guerra Mundial, ou seja, a ótica é importante para delinear o prisma dessa leitura social. A citação poderia criar uma bela ponte, desde que Silvia se revelasse, sobretudo diante das recorrências às tradições haitianas, por ela apropriadas para desesperadamente resgatar o amor. Pena que isso não acontece. O resultado é desafiador, eventualmente provocante, mas debilitado por pequenas desarticulações internas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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