Crítica
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Sinopse
Em Barba Ensopada de Sangue, após a morte de seu pai, Gabriel (Gabriel Leone) parte para a praia da Armação, em Santa Catarina, à procura de suas origens. O que ele acaba encontrando é uma trama complexa em torno da figura misteriosa de seu avô, um esqueleto de baleia e uma cidade que quer enterrar seu passado a qualquer custo.
Crítica
Gabriel (Gabriel Leone) é o típico protagonista cinematográfico que, ao lidar com uma herança, acaba desvendando histórias familiares. Pense em quantas vezes você viu personagens se deparando com acontecimentos que eles ignoravam ao, por exemplo, serem obrigados a se desvencilhar da propriedade de um antepassado qualquer. Mas, nem sempre aquilo que os ancestrais deixam para trás agrega alguma coisa, como no caso desse jovem gaúcho que parte rumo a Santa Catarina a fim de preparar o terreno para a venda da decadente casa à beira mar de seu avô. Depois de uma morte, a Gabriel restará encarar problemas antigos ao ocupar o lar abandonado do parente malquisto no litoral catarinense, logo enfrentando a animosidade dos moradores que o tomam como uma espécie de fantasma. Em suma, ele lida com a sina imposta pelos pecados de alguém com quem é fisicamente parecido, por isso se transformando em persona non grata na vila de pescadores que o vem com desdém. Baseado no livro homônimo de Daniel Galera, Barba Ensopada de Sangue tinha tudo para ser um drama denso sobre a introspecção de alguém diante da inevitabilidade da morte e, principalmente, da missão de responder pelos erros de quem veio antes. Afinal de contas, ainda baqueado pela dor do luto, Gabriel é obrigado a ser o forasteiro indesejado. Porém, o resultado fica aquém das expectativas.
Um dos principais equívocos numa produção com essa abordagem é confundir introspecção com apatia. E, infelizmente, o cineasta Aly Muritiba permite que em diversos momentos as coisas descambem rumo a um marasmo pouco propositivo. Nessa jornada de conexão do protagonista com a própria herança, o recolhimento à intimidade é pouco convidativo. Além disso, a relação entre personagem pensativo e cenário paradisíaco nem sempre resulta em situações poéticas; a construção da hostilidade da comunidade ribeirinha é feita de maneira esquemática; e o sofrimento de Gabriel é apresentado de modo excessivamente fragmentado. O forasteiro recebido com antipatia pelos locais é uma constante no cinema e pode significar várias coisas, desde a xenofobia até o receio da perda de uma harmonia conquistada a duras penas. No caso de Barba Ensopada de Sangue, o que leva a maioria dos moradores a rechaçar a presença de Gabriel é o que ele representa, pois todos dizem que até a sua barba cerrada é exatamente igual à do homem que não levava desaforo para casa antes de desaparecer em circunstâncias misteriosas. No entanto, o cineasta segmenta demais as demonstrações de desgosto dos locais com Gabriel, as intercalando com longas cenas de meditação e, com isso, evitando que a panela pegue a devida pressão para cozinhar as tensões anunciadas pelas pessoas a cada novo conflito.
Barba Ensopada de Sangue sofre por conta de outro problema crônico: a artificialidade de certos elementos. O primeiro deles diz respeito aos sotaques sulistas. O carioca Gabriel Leone até tenta imitar a prosódia tipicamente gaúcha, mas não sustenta isso e frequentemente escorrega para fora da naturalidade. Por sua vez, a paulistana Thainá Duarte não se sai muito melhor ao emular o sotaque catarinense, destoando dos demais intérpretes dos interioranos por investir num acento semelhante ao dos nativos da capital Florianópolis. E os dois intérpretes “se esquecem” dos sotaques em momentos emocionalmente mais intensos, ou seja, há uma displicência na construção e na manutenção das pronúncias. Pode parecer mesquinharia enfatizar sotaques como algo problemático, mas estamos diante de uma trama em que as linguagens importam como indícios, em que o gauchismo casmurro de Gabriel é tão essencial quanto as raízes catarinenses da aguerrida Jasmin. Ainda sobre o artificialismo que compromete a credibilidade do longa-metragem, Gabriel Leone ostenta uma barba falsa na maior parte do enredo, o que se transforma num ruído. Além disso, as indicações de que o passado está mais presente do que todos gostariam são arremessadas e pouco elaboradas como sintomas na trama, vide a mão mumificada na caixa d’água, justificada mais tarde pela semelhança com a anatomia das baleias.
Diretor de muito talento, o baiano Aly Muritiba figura entre os nossos principais artesãos da atualidade. Responsável pelos excelentes Para Minha Amada Morta (2015) e Deserto Particular (2021), ele tenta transpor essa história escrita em prosa por Daniel Galera com prioridade às entrelinhas e sugestões. Nesse sentido, é bem-vinda essa sua abordagem que não subestima a inteligência do espectador, sobretudo a aposta no poder da imagem e na associação dos elementos poéticos para fins dramáticos. No entanto, ele perde a mão por abandonar rápido demais certos assuntos em Barba Ensopada de Sangue, por não mergulhar nesse mar de obscuridades e hostilidades associado à natureza ora paradisíaca, ora selvagem. Às vezes temos a sensação de que o enredo está andando em círculos, mas sem que esse redemoinho cause vertigens no espectador. De modo semelhante, a dificuldade de comunicação de Gabriel repetidamente soa como uma demonstração de apatia que raramente resvala na introspecção daqueles que não conseguem se expressar conforme as necessidades exigem. Aly parece confiar demais na associação simples entre as imagens melancólicas e a trilha sonora pesarosa, negligenciando, por exemplo, a exploração da condição de saúde fundamental que faz o protagonista se esquecer rapidamente dos rostos. O resultado é longo, morno e decepcionante.
Filme visto no 18º CineBH, em setembro de 2024.
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