Com os últimos dias da repescagem, em novembro de 2020, a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chega ao fim. Trata-se da primeira edição do evento em formato online, respondendo aos tempos pandêmicos. Diversos festivais (Gramado, Ecrã, É Tudo Verdade, In-Edit, Olhar de Cinema) tinham se organizado por meio de plataformas virtuais, mas poucos apresentavam o volume de filmes simultâneos da Mostra, com 198 títulos selecionados. Este foi um teste de fogo para a viabilidade de festivais digitais de grande porte no Brasil. Apesar de esperados percalços iniciais na compra de ingressos e no uso do player (lembrando-nos que os problemas de projeção e som, típicos dos festivais presenciais, encontram suas equivalências no meio virtual), os organizadores logo se adaptaram às demandas e necessidades das exibições. O evento veterano transpareceu nova juventude ao experimentar um formato de exibição inédito.

 

17 Quadras, documentário vencedor da 44ª edição

 

O formato democratizou e equilibrou a seleção. Não havia uma divisão entre obras mais aguardadas, exibidas em salas de capacidade superior, e pequenos títulos espremidos nas salas anexas dos circuitos. Todas as exibições tiveram, a princípio, a mesma qualidade de som e imagem, condicionadas aos equipamentos de cada espectador. Isso talvez tenha prejudicado a todas igualmente, ou colocado as sessões em pé de igualdade. Costuma-se dizer que alguns projetos “precisam da tela grande”, ou “merecem a tela grande” mais do que outros. Bobagem. Tanto a grandiloquência de Berlin Alexanderplatz quanto o intimismo de O Último Banho se beneficiariam da projeção presencial. Assim como os demais, foram vistos como puderam, da melhor maneira possível, o que transmite o ideal da arte enquanto resistência: mesmo quando os governos não ajudam, a saúde está comprometida e as verbas se extinguem, encontram maneiras de chegar ao público. O formato “novo” também constitui, ironicamente, um atalho de conservação, sustentando o espaço conquistado junto ao público cinéfilo.

A pandemia provocou efeitos curiosos nas projeções. Embora a quase totalidade dos títulos tenha sido concebida e finalizada antes de a Covid-19 se espalhar mundo afora, eles se conectam involuntariamente com a realidade de paranoia e desencanto. Multiplicaram-se as fábulas sobre personagens solitários, de saúde mental comprometida em apartamentos claustrofóbicos, precisando vivenciar alguma fuga simbólica do real (Mulher Oceano, Dias, Entre Mortes, Apenas Mortais, Chico Ventana Queria Ter um Submarino, Dezesseis Primaveras, O Livro dos Prazeres, A Santa do Impossível). O mar, símbolo clássico de abertura ao outro e à aventura, marcou inúmeras cenas finais e se tornou a imagem predileta do aceno a novos rumos (em Mosquito, Mulher Oceano, Pari, O Livro dos Prazeres, Verão Branco, Luz Acesa, A Marina, Mar de Dentro). Em outras edições, essas seriam apenas divertidas coincidências. Agora, tornam-se comentários de um ano de clausura e incomunicabilidade.

 

Entre Mortes

 

A experiência também se modificou para os críticos de cinema. O acesso a diversas projeções simultâneas provoca angústia ainda maior do que aquela de escolhê-los dia após dia. Antes de 2020, nunca tivemos tantas obras potencialmente interessantes à disposição, o que provoca a sensação de pequeneza diante do todo (enquanto a Mostra ocorria, outros eventos dignos de interesse eram organizados em paralelo) e de uma relação bulímica com a arte e a profissão. Consomem-se mais obras, mais rápido, porém com menos tempo de absorção, debate e respiro. Descobrimos a importância negligenciada do tempo de saída da sala, de se acenderem e apagarem as luzes, da conversa com colegas pós-sessão – em outras palavras, o cinema enquanto cerimônia se dilui no formato online. Confesso ter assistido a alguns filmes com o prato de comida no colo, ou então durante o dia, quanto as cortinas de casa não deixam a sala completamente escura. Não é a mesma coisa (mas ninguém imaginava que seria, certo?). Até hoje, não entendo os motivos que despertaram a paixão profunda dos colegas por Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição, nem compreendi os motivos pelos quais não compartilham da minha atração por Entre Mortes e Dezesseis Primaveras. Fazem falta as conversas de saguão, correndo entre sessões, subindo e descendo a Rua Augusta, de um lado para o outro da Avenida Paulista.

Tivemos menos títulos badalados de Cannes, Berlim e Veneza, o que pode ser considerado uma desvantagem para alguns. Pelo contrário, isso oferece a oportunidade rara de descobrir cineastas debutantes e propostas ousadas. Sem as filas intermináveis para ver o novo Dardenne, o novo Lars von Trier ou o novo Almodóvar, cresceram as apostas no cinema de Lesoto (Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição), Azerbaijão (Entre Mortes), Ruanda (Nossa Senhora do Nilo), Lituânia (Ao Entardecer), Bulgária (Gato na Parede), Sudão (Impedimento em Cartum), Mongólia (As Veias do Mundo), Líbano (Assim como Acima, Abaixo) e Armênia (Limiar). Com menos autores consagrados, ou talvez relegados às exibições especiais (caso de Jia Zhang-ke e Frederick Wiseman), a seleção se mostrou bastante jovem, tanto na Mostra Novos Diretores quanto na Perspectiva Internacional. Pela surpresa diante do talento impressionante de Suzanne Lindon, aos 20 anos de idade, ou das habilidades da brasileira Joyce Prado, o evento cumpre o papel de acenar ao futuro do cinema.

 

Mulher Oceano

 

No que diz respeito à produção brasileira, não havia Bacuraus e As Vidas Invisíveis capazes de monopolizar atenções para si, o que não implica em menor qualidade, apenas um nivelamento entre descobertas. As melhores obras vieram de mulheres: Mulher Oceano, O Livro dos Prazeres, Ana. Sem Título. Em paralelo, os filmes mais potentes foram aqueles capazes de observar grandes temas sociais com a devida poesia e disposição a criar metáforas, ao invés de apresentar um discurso literal demais. Somam-se aos três citados o delicado Filho de Boi, o caleidoscópico Cidade Pássaro e o dramático Valentina, enquanto obras de denúncia social explícita chamaram menos atenção. Em meio ao cenário de desmonte da Ancine, ao fechamento da Cinemateca e às ameaças institucionais de censura, os diretores provam-se livres em sua abordagem do corpo, da sexualidade, da raça e do gênero.

Enquanto os festivais precedentes à Mostra foram dominados pelos cineastas veteranos (Geraldo Sarno com Sertânia, Helena Ignez com Fakir, Paula Gaitán com Luz nos Trópicos), esta foi a vez de conhecer dezenas de diretores em seu primeiro ou segundo longa-metragem. A Mostra de São Paulo se demarcou pela renovação, ainda que não necessariamente pela inovação (é difícil falar em novas correntes estéticas ou proposições radicais a partir das obras selecionadas). Tanto o evento quanto os filmes possuem o mérito de sua própria existência no cenário adverso. Além disso, conseguiram estabelecer uma comunicação ampla com o espectador distraído do tempo das telas portáteis. O cinema certamente não foi feito para elas, mas sabe priorizar o público quando necessário.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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