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Sinopse

Aos 35 anos, Margaret tem um histórico de comportamento violento. Durante uma briga, ela agride a própria mãe e a deixa parcialmente surda, o que encerra a carreira da pianista. Margaret é obrigada, por lei, a permanecer a 100 metros de distância da mãe. A irmã mais nova, Marion, traça uma linha azul no chão, na distância indicada, para ajudá-la no processo.

Crítica

The Line (2022) é marcado por uma curiosa indefinição de tons. A cena inicial chama muitíssima atenção a si própria, positiva ou negativamente: mãe e filha brigam dentro de casa, diante dos olhares atônitos dos parentes. Trata-se de uma batalha sangrenta (literalmente), registrada em câmera lentíssima, com objetos voando pelos ares e gritos de desespero. As mulheres urram em close-up, depois atiram pertences ao chão. Margaret (Stéphanie Blanchoud) e Christina (Valeria Bruni Tedeschi) oferecem o tipo de caretas aceitáveis sobretudo na comédia e no teatro de variedades. Na sala de cinema, os espectadores não tardaram a soltar uma risada discreta, e uma vez legitimado o riso coletivo de desconforto, todos se livraram ao escárnio diante das situações improváveis. No entanto, é incerto que a diretora Ursula Meier tenha buscado um teor assumidamente cômico. Ela conduz com seriedade este melodrama feminino e, talvez por acreditar nas dores de cada mulher, intensifica os traços ao limite da paródia. De qualquer modo, o projeto mergulha numa família de figuras que precisam exteriorizar sentimentos via música, gritos ou carícias. Nada é privado para esta dinâmica de provocações: a mãe beija demoradamente o namorado jovem na frente de todos; a filha agressiva retira a roupa e expõe a nudez aos convidados; a garota mais nova canta a plenos pulmões seu recital íntimo, à beira de uma avenida movimentada.

Um dos fatores de incômodo diante da obra provém do fato que a autora e sua atriz principal (também corroteirista) efetuam uma leitura pouco generosa das ocupantes da casa. A pequena Marion (Elli Spagnolo) constitui uma ilha de sobriedade em meio a personalidades histriônicas: para Margaret, força se traduz em agressão — basta ouvir a palavra “mãe” para a jovem esmurrar qualquer um à sua volta. Para Christina, a força passa pelo erotismo e pelo comportamento extravagante de diva, dando ordens sussurradas e implorando por carinho. A filha do meio, Louise (India Hair), conduz sua gravidez avançada como um operário brusco, empurrando a contragosto uma carga indesejada. Por que as autoras se dedicam a um retrato tão antipático, e mesmo caricatural, destas feminilidades? A melhoria estaria prometida à próxima geração, dotada de alguma forma de prudência? Meier aposta nas figuras catárticas enquanto bons motores de conflitos, reforçando obsessivamente os traços de selvageria em cada uma delas. Não basta imprimir tensão entre mãe e filha, separadas por uma linha azul no chão: é preciso filmar este limite inúmeras vezes, focar a dupla central em planos próximos, efetuar um zoom-in na cena final. A direção acredita que sempre pode fazer mais: vide a pregação a Deus durante horas; a pressão por um contato sensual da pré-adolescente com o padrasto; e o concerto improvisado da ex-pianista no caminhão de reboque. Nenhum fato ficará subentendido: a diretora insiste, traduz, repete, reforça suas intenções rumo à caricatura.

A narrativa melhora substancialmente quando se foca na pequena Marion, capaz de controlar o ponto de vista e fornecer ao espectador uma forma de respiro. A garotinha, bem dirigida e interpretada, relembra o belo cinema humanista que a cineasta havia demonstrado em Home (2008) e Minha Irmã (2012), quando o grão de surrealismo permanecia contido nas regras do realismo fantástico. Ainda que a garota seja desprovida de vida própria (o canto, a religião católica e os estudos são condicionados ao imbróglio familiar), ela atenua o ritmo da trama e resgata o status de “drama de personagem” que o projeto anunciava a princípio. O problema se encontra na dependência excessiva da metáfora da linha azul sobre o chão. Devido a uma medida judicial, Margaret precisa ficar a 100 metros de distância da mãe, razão pela qual a irmã jovem traça esta barreira física nos arredores. As noções de uma fronteira invisível, e de um limite intransponível na relação entre mães e filhas, possuem grande interesse enquanto metáforas, porém se esgotam nesta representação literal demais. Nenhuma sequência particularmente interessante em termos de simbologia, estética ou narrativa decorre deste traço azul. Seria interessante explorar as tentativas de driblá-lo, a oposição dos moradores ou da prefeitura local ao pequeno ato de vandalismo. Entretanto, as brigas extravagantes da família jamais trazem o resto da vizinhança para dentro de casa. O dilema segue restrito a este universo-bolha dependente de caráter e força de vontade, visto que problemas financeiros e comunitários estão ausentes.

Duas cenas resumiriam bem as qualidades e as fragilidades do projeto. 1. Marion teme que a irmã entre em crise ao ver o piano materno sendo retirado da propriedade. Ela encena um canto exagerado e nocivo a si mesma (repetindo portanto o comportamento de mãe e irmã), enquanto o objeto desfila às costas da mulher agressiva. A cena dura pouco, é filmada em ângulos modestos, e não surte qualquer efeito na narrativa a seguir. 2. Uma grande revelação a respeito da saúde de uma personagem chega, enfim, aos ouvidos de todos. As protagonistas gritam e se desesperam como de costume. Após alguns cortes internos, os parentes desapareceram do plano, e Margaret permanece sozinha no terreno vazio, transformado em palco para as artistas fracassadas. Em ambos os casos, há uma nobre intenção, que talvez tenha soado prodigiosa durante a escritura do roteiro. No entanto, materializadas em locações modestas e atrizes nada modestas, o efeito se perde — as cenas se tornam rápidas e curtas demais, incongruentes em termos de montagem, enquadramento e eixo. Este exato roteiro poderia ter rendido um drama ambíguo, que os irmãos Dardenne, produtores deste longa-metragem, saberiam extrair com seu distanciamento implacável. 

Meier, conhecida pelos excelentes dramas familiares, rende-se desta vez a um melodrama de aparência novelesca graças à sucessão de incontáveis clímaxes. Suas atrizes poderiam apresentar nuances e ambiguidades, mas parecem ter sido instruídas a buscar o tom maior, épico e operístico — o cinema sabe bem do que Valeria Bruni Tedeschi é capaz quando estimulada à saturação. Caso não fosse dirigido, escrito, fotografado e editado por mulheres, a insinuação de misoginia recairia sem dúvida sobre esta abordagem de corpos teatrais, exagerados na dor da surdez e no orgulho das feridas no rosto. Estas figuras exploram um imaginário lânguido e farsesco da feminilidade, propenso à aparência de enganação, de truque para seduzir e manipular os convives. Mas que legitimidade teria este escritor, um homem, para dizer às autoras de que forma o feminino deveria ser retratado nos cinemas? É possível que o mergulho na histeria venha de uma reivindicação do direito ao expurgo e ao despudor — quem sabe? A referência às telenovelas costuma se traduzir numa desqualificação simples, mas graças à combinação incansável de choros, gritos, amores e rancores, culminando em nascimentos e no poder do perdão (em close-ups e diante dos aplausos do público), o rótulo se sustenta. Meier vinha trabalhando sentimentos que se chocavam uma intensa barreira de contenção. Pois agora a represa se rompeu.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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