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Sinopse

Pouco após a morte de dona Carmelita, aos 94 anos, os moradores de um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa.

Crítica

Bacurau é uma espécie de repositório de parte das influências cinematográficas dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lugar-cinema onde pulsa a intensidade do faroeste, gênero norte-americano por excelência, aqui devidamente sorvido, processado e regurgitado na tela com sabor de feijão de corda. Diferentemente de associações mais diretas de outrora do cangaço com as tramas ambientadas no Velho Oeste estadunidense, num movimento conhecido como “nordestern”, os realizadores utilizam a base da mítica dos cowboys para promover uma narrativa intensa e socialmente enraizada. O filme começa com uma sucessão de imagens e circunstâncias consideravelmente estranhas, como o acidente na estrada que faz do percurso entre caixões um vislumbre beirando o onírico. Teresa (Barbara Colen) está de volta à sua terra natal a fim de prestar as últimas homenagens à avó, Carmelita (Lia de Itamaracá), um dos pilares locais. O outro destes é Domingas (Sônia Braga), aturdida durante os festejos à amiga morta, assim como ela, basilar a essa sociedade repleta de singularidades, na qual, logo, as mulheres não cumprem papel meramente decorativo.

A História é um dos personagens principais de Bacurau. Resguardado no fechado museu da localidade, o passado das cercanias, a energia continuamente vibrando por entre aquelas ruelas que configuram um cenário típico dos faroestes, ganha plenamente a luz do dia quando necessário expor do que é feito esse povo aparentemente dócil, cultor de sua essência. Kleber e Juliano dosam com maestria, a conta-gotas, o perigo que ameaça se debruçar sobre todos os presentes, sublinhando conversas supostamente aleatórias acerca de uma questão atrelada ao racionamento de água que converge à precipitação de motoqueiros completamente destoantes da paisagem sertaneja. O suor verte dos corpos deflagrando a imperativa potência do sol, um dos signos dessa região conhecida pelo calor e, às vezes, pela inquietante ausência de chuva. Não à toa, como que para perturbar a ordem estabelecida por lugares-comuns, a certa altura cai o toró que deságua na relva verdejante. Já o sangue na camisa é a perpetuação de uma tradição e o aviso aos incautos empedernidos.

Bacurau começa no espaço, de maneira insólita, e brinca com a existência de seres extraterrenos, vide a presença de drone de contornos peculiares. A forma como os realizadores inserem tal objeto voador facilmente identificável nesse futuro não muito distante é outro indício da paixão cinéfila que, assim, verte dos poros desse filme concomitantemente reverente à tradição cinematográfica e à nordestina. Vilões não são apenas aqueles chefiados por Michael (Udo Kier), os homens e as mulheres que se comunicam em inglês numa evidente metáfora, devido às circunstâncias, que tange ao ímpeto imperialista dos ianques. Kleber e Juliano colocam um alvo também na demagogia política que entrecorta o cotidiano de Bacurau com promessas vazias e esmolas vencidas, dadas aos eleitores para convencê-los a vender a sua aprovação nas urnas. Mas esse pedaço de terra apartado do mapa com a morte da matriarca é feito de gente movida pela resistência que corre nas veias. Moral e bons costumes sustentados por hipocrisias não florescem nesse solo.

A cidade de Bacurau é habitada por um sem números de párias, dos moradores que se prostituem livremente ao valente Pacote (Thomas Aquino), sujeito célebre nas cercanias por matar em meio a assaltos. Mas não há julgamentos que façam frente ao forte sentimento de pertencimento, de comunidade, unindo habitantes quando a ameaça literalmente estrangeira perverte a harmonia da convivência. Bacurau é um filme que entrelaça exemplarmente mitos, sejam eles oriundos do cinema ou do legado deixado por antepassados, imiscuindo Lampião e o seu bando acossado pelas perseguições da Volante com figuras antagônicas decalcadas diretamente de produções consideradas B, muitas delas remetentes diretamente aos anos 80. Kleber e Juliano criam um produto brasileiro de exportação, transbordante de personalidade, especialmente pela maneira como adicionam elementos regionais em estruturas narrativas mercadologicamente dominantes, ou seja, utilizando componentes, intensidades e variações caros aos "gringos", porém dotando-os de brasilidades.

Bacurau reforça a inclinação por uma insurreição lendária, distante do puro messianismo, ao introduzir em cena Lunga (Silvero Pereira), força simbólica constituída de diversas vertentes, um cangaceiro moderno, pois benfeitor dos conterrâneos e absolutamente impiedoso com os representantes do poder instituído. Com jeito de atração circense, por conta da extravagância de suas vestes, mas olhar resoluto diante da necessidade de blindar os seus das ameaças externas, ele é a manifestação da resistência, de algo que adquire tons de manifesto sócio-político com a participação de todos na defesa do território dos levianos que compreendem-no como um campo de caça, pura e simples. É bastante emblemática a humilhação dos brasileiros sulistas, esnobes e orgulhosos de serem de uma região pretensamente mais rica, pelos contratantes estrangeiros que, sequer, reconhecem-nos como sujeitos brancos. O preconceito e a carga de elitismo contidos nesse desdém dizem muito sobre as intenções de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a de fazer um filme no qual dialogam heranças que, então fortemente conciliadas, atestam a força do cinema e do povo do Nordeste.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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