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Sinopse

Suzanne tem 16 anos e fica entediada na companhia de pessoas da sua idade. Ela acaba se envolvendo com um homem mais velho, por ela obcecado. Porém, começa a refletir se não está perdendo algo pelo caminho.

Crítica

À primeira vista, não há absolutamente nada excepcional em Dezesseis Primaveras (2020). Suzanne (Suzanne Lindon), uma estudante do Ensino Médio, apaixona-se por Raphaël (Arnaud Valois), um ator de teatro de 35 anos de idade. Ela se sente desconfortável pelo inesperado romance; ele também. Da primeira a última cena, o longa-metragem de sucintos 74 minutos se concentra na dupla solitária, desenvolvendo todas as passagens obrigatórias da descoberta amorosa: os primeiros olhares, a aproximação, as frases desajeitadas a princípio (“Tem isqueiro?”, pergunta o homem com o cigarro aceso nas mãos), a ansiedade do reencontro, a angústia quanto ao futuro (Ele quer me rever? Ele vai comparecer ao encontro? Ele ainda vai gostar de mim amanhã?). Na escola, durante as aulas, Suzanne está ausente, pensando em Raphaël. Durante as peças de teatro, ensaiando, Raphaël tem o pensamento distante, focado em Suzanne. Nada aproximaria estas pessoas tão diferentes em geração, interesse e experiência de vida para além do acaso generoso do roteiro, ou deste golpe do destino disposto a uni-los. A estudante jamais integra a vida privada do ator: eles constituem um parêntese na vida cotidiana alheia, como um sonho compartilhado entre ambos.

Aos poucos, percebe-se que tudo é excepcional no drama francês. Evitam-se os extremos esperados do retrato do primeiro amor: a ideia do personagem que não come, não dorme, se torna irritado ou carente passam longe deste cenário de sutilezas. A garota continua desempenhando bem os estudos e correspondendo às demandas dos pais gentis, ainda que um pouco indiferentes. A expectativa do êxtase, do trauma, da catarse, ou seja, da profunda felicidade ou da profunda tristeza também é frustrada: a protagonista vive num torpor intimista, semelhante àquele do homem por quem se apaixona. Em outras palavras, sua vida se transforma por completo (internamente), porém absolutamente nada muda (externamente). Ela não perde aulas, não é flagrada por terceiros. Os encontros no café convêm aos horários de um e de outro. O amor costuma ser abordado enquanto fonte clássica de conflito: um dos lados deseja o outro, mas não pode tê-lo; ou eles se desejam de maneiras diferentes, em tempos diferentes etc. Lindon, jovem atriz, roteirista e diretora, possui a generosidade de permitir a seus personagens se encontrarem sempre, num mesmo estado de espírito, quando o desejam. Os sucos e torradas compartilhados durante poucos minutos se traduzem em instantes mágicos na vida de ambos. Depois disso, cada um segue seu rumo.

Qualquer problema ético no relacionamento entre uma jovem de dezesseis anos e um homem mais velho é dissipado pelos encontros sem beijo, sem sexo, sem contato íntimo explícito. A premissa de representar o amor ao invés de mostrá-lo constitui um desafio considerável, diante do qual a maioria dos diretores sucumbiria. Mesmo assim, a cineasta constrói poeticamente a vontade de estar juntos, de se ver, de conversar. Ela privilegia os olhares distantes, as lembranças mínimas de um e outro na vida cotidiana, até proporcionar as cenas musicais. Dotado de registro naturalista, com câmera na mão acompanhando personagens, este não seria o filme em que se esperaria ver os personagens dançarem. No entanto, eles começam a se movimentar, numa dança contemporânea singela, entrecortada do resto do mundo (ninguém os percebe dançar, apenas o casal). Os instantes musicais introduzem-se aos poucos na narrativa, conectando-se entre si tanto pelos temas da coreografia quanto pela proximidade crescente de Suzanne e Raphaël. A sequência do café, com a primeira dança em dupla, transmite uma beleza sublime porque simplicíssima e inesperada dentro de um gênero tão afeito à artificialidade. O trabalho de câmera durante a coreografia na rua, aproximando-se e afastando-se (ou seja, oferecendo close-ups e planos de conjunto dentro de um único plano) é impecável.

O desempenho de Lindon merece um capítulo à parte. Aos vinte anos de idade, em sua primeira atuação e experiência como diretora, ela apresenta uma composição de personagem memorável. Ela possui pleno controle do corpo, da voz, das intenções em cada instante – não há uma única cena deslocada em termos de tom, equilíbrio narrativo ou coesão técnica. A performance da jovem, entre dança e artes dramáticas, atinge um refinamento digno de estudo por parte dos teóricos do cinema. Tímida sem ser frágil, romântica sem ser ingênua, a garota virgem demonstra segurança de seu corpo para vestir uma saia justa. Ela tem a certeza de como manipular os pais para obter as concessões desejadas, e quando mandar uma colega de escola calar a boca. Costuma-se associar a “protagonista feminina forte” à figura das heroínas de ação que decepam cabeças e disparam tiros. Suzanne, em contrapartida, representa uma figura feminina fortíssima, ainda que sua potência seja compartilhada unicamente com o espectador, em posição de cúmplice deste primeiro amor. “Ela está estranha”, indaga-se o pai, com razão, ao ser acordado pela adolescente de madrugada. No entanto, ninguém entende Suzanne ou Raphaël – exceto o público.

Dezesseis Primaveras guarda semelhanças com um dos mais belos dramas franceses recentes: Mademoiselle Chambon (2009), outra história de romances mínimos, frases de amor presas na garganta, desejos que não podem se concretizar – ou acontecem apenas quando nós, testemunhas privilegiadas, estamos olhando. Não por acaso, Mademoiselle Chambon é estrelado por Vincent Lindon e Sandrine Kiberlain, dois dos maiores atores em atividade na França, e pais de Suzanne Lindon. A filha herda a predileção pelo conto silencioso (a conclusão serviria perfeitamente à estrutura do conto literário), dotado de uma iluminação muito triste (um pouco mais contrastada e sombria dentro de casa do que de costume) e da necessidade de encontros presenciais, físicos, com os olhos nos olhos. Em tempos pandêmicos, o resultado se torna ainda mais forte. Trata-se de uma história pré-smartphones, pré-vida mediada por telas. Suzanne e Raphaël jamais pedem o número um do outro: eles apenas dizem onde e quando se encontrar, e estarão lá. Existe algo muito concreto neste amor de gente que se vê nas ruas, em público, e ainda consegue transmitir a impressão de um encontro íntimo. A dupla está ironicamente conectada de maneira indissociável (eles se cruzam sempre, mesmo quando não marcam), e distante pelas circunstâncias de vida, idades e planos para o futuro. Este relacionamento propicia um deslumbramento para Suzanne, para Raphaël, para o espectador e para mais ninguém.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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