Crítica
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Sinopse
Década de 1940. Eurídice é uma jovem talentosa, mas introvertida. Guida, sua irmã mais velha, é o oposto em temperamento e em convívio social. Ambas vivem sob um rígido regime patriarcal, o que faz com que trilhem caminhos distintos: uma decide fugir de casa com o namorado, enquanto a mais nova se esforça para se tornar uma musicista, ao mesmo tempo em que precisa lidar com um casamento sem amor.
Crítica
A forma como o cineasta Karim Aïnouz trabalha o tempo é muito importante à fruição de A Vida Invisível, longa-metragem que começa com uma cena passível de ser lida tanto em chave simbólica quanto numa literal. Eurídice (Carol Duarte) e sua irmã, Guida (Julia Stockler), perdem-se uma da outra no terreno idílico e íngreme de certa floresta carioca, num ambiente arborizado que adquire contornos melancólicos encarregados de anunciar, como arautos, o grande tema do filme, justamente o distanciamento das protagonistas. As diferenças as definem, mas não as antagonizam, bem pelo contrário. A tímida e acanhada Eurídice é uma virtuosa pianista cujos sonhos apontam à vontade de estudar num conservatório em Viena, na Áustria. Sua mana, Guida, é expansiva, indócil, mulher à frente do seu tempo, de inquietude excepcional nos tradicionais anos 50. Demarcando a passagem cronológica às vezes abruptamente, assim acentuando o que o transcorrer dos anos adensa, o realizador apresenta o infortúnio da separação que as define de modo indelével.
A Vida Invisível é sobre mulheres lutando para existir ao largo da configuração falocêntrica de uma sociedade machista, construída sobre as bases, os anseios e as vontades dominantes. É um homem, no caso o pai delas, o responsável pela brutalidade que carimba os destinos. Em primeiro lugar, por conta da suposta nódoa deixada pela escandalosa gravidez distante dos moldes familiares consentidos. Num segundo instante, em virtude da manutenção da mentira, da perpetuação dessa mágoa advinda da quebra de uma ordem construída como certa a partir da lógica vigente. Não é apenas por meio da imagem granulada que a textura da produção sobressai, nem somente pela direção de arte esmerada na recriação de um Rio de Janeiro romântico, mas não menos atravessado por toda sorte de questões. Karim trabalha as minúcias espaciais até conferir ao cenário uma organicidade complementar à genuinidade dos vínculos como essenciais nessa sóbria epopeia de dores.
Valendo-se abertamente da tradição do melodrama, nesse caminho evocando Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder, mas com personalidade, Karim Aïnouz se detém sobre os pequenos dramas domésticos e íntimos que crescem ao ponto de sufocar irremediavelmente. Carol Duarte dá a luz a uma Eurídice cada vez mais conformada com as engrenagens que lhe são impostas dentro da estrutura do casamento contraído com um sujeito por ela apaixonado, mas, como boa parte das figuras masculinas ali, algo imaturo. Já Julia Stockler tem a missão de fazer de Guida alguém de temperamento libertário que, de jeito tão análogo quanto insuspeito, é empurrada para uma vida à qual precisa se adequar. Em certo sentido, A Vida Invisível fala desses lugares hermeticamente fechados em que, sobretudo, as mulheres são confinadas a partir de preconcepções tacanhas. Mas, o diretor passa longe de criar uma dicotomia, estabelecendo bolsões à leitura também dos “algozes”.
Os homens de A Vida Invisível reproduzem inadvertidamente a toxicidade da masculinidade alimentada por séculos. Antenor (Gregório Duvivier), marido de Eurídice, é um rapaz de infantilidade evidente. A primeira transa entre os dois deflagra bem a nocividade do machismo. Ele somente se preocupa em deflora-la, assim cumprindo um papel, num gesto mecânico oriundo da determinação do que fazer para encaixar-se na configuração pré-estabelecida de provedor. A esposa, por sua vez, se limita a abrir as pernas e, como diz a vizinha, "suportar até a ardência passar", e o então cônjuge literalmente gozar nela. Eurídice e Guida, uma vez separadas, passam a relacionar-se no plano imaginário com versões bem-sucedidas de quem está longe, e essa idealização bolada como estratagema para completar as lacunas dolorosas torna as coisas ainda mais lancinantes e eventualmente avassaladoras, mesmo que o filme não seja rasgado e mantenha a parcimônia.
Ao cruzar duas horas de duração, A Vida Invisível já se apresenta como obra madura, feita por um diretor que abraça vigorosamente as possibilidades do gênero melodrama para discorrer sobre a invisibilidade das mulheres num tecido social que acolhe e respeita praticamente tudo do macho. Mas, com a habilidade de quem dá a pincelada final com requintes de maestria, Karim lança mão de uma elipse que coloca Fernanda Montenegro em cena, mostrando-a como uma versão castigada por décadas de saudade. A grande dama do cinema e do teatro brasileiro interpreta, de maneira contida e absolutamente comovente, os efeitos silenciados, não verbalizados ou demonstrados abertamente, das violências que o filme dispõe como o quinhão feminino por existir numa conjuntura sociopolítica fundamentada na prevalência dos homens, atenta às necessidades deles. Sua participação é um dos maiores instantes do nosso cinema dos últimos anos. Um grande filme.
(Filme assistido durante a 29ª edição do Cine Ceará)
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