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Sinopse

Precocemente, aos 13 anos, João rompe laços com seu pai, sonhando em fugir logo do sertão baiano. Novas perspectivas se apresentam quando o circo chega à cidade e ele se torna amigo do palhaço Salsicha.

Crítica

Filho de Boi (2019) representa muito bem um neo-neorrealismo brasileiro (na falta de termo melhor), crente na força bruta das imagens, das paisagens e dos silêncios. Enquanto uma nova vertente autoral aposta no hibridismo entre gêneros e nas construções fabulares (Bacurau, 2019, A Vida Invisível, 2019, Divino Amor, 2019), a produção baiana resgata uma linguagem apoiada na cuidadosa aparência de improviso em frente às câmeras. A imagem fluindo entre os rostos das diferentes crianças, além da luz natural, da expressão carrancuda de João (João Pedro Dias) e dos relacionamentos ásperos condizem com um Brasil avesso à romantização. Não existe qualquer desejo de espetacularização da vida do garoto, cujos dias junto ao pai (Luiz Carlos Vasconcelos) são representados com marcante simplicidade. Avesso à psicologização dos personagens, o diretor Haroldo Borges executa o que poderia ser descrito ironicamente como um filme de ação: registra-se os gestos externos da vida do aspirante a palhaço e dos membros do circo. Não há abertura a pausas para sentir a dor da mãe, nem manifestações de lirismo desprovidas de ligação direta com a trajetória do protagonista. Rumo à conclusão ele será chamado, discretamente, de menino-pássaro, sem que o apelido repercuta no vilarejo, nem modifique a trama. Este é o tipo de poesia singela proposta pelos criadores.

Felizmente, a produção domina com destreza as ferramentas do cinema naturalista. Impressionam o dinamismo da montagem (trabalhando muito bem as elipses), o uso impecável da luz natural, tanto no sol intenso quanto nos instantes crepusculares, assim como a captação e mixagem de som responsáveis pela verossimilhança do cenário seco, tão solitário quanto asfixiante para João. Em especial, cabe ressaltar a coesão destes elementos: nenhuma função criativa chama mais atenção para si mesma do que as demais. Evita-se o exibicionismo da câmera, o preciosismo da direção de arte e o desnível entre os atores. Ao lado de veteranos como Luiz Carlos Vasconcelos, as crianças novatas e os frequentadores do circo têm sua composição pouco técnica bem moldada pela direção e pela preparadora Fátima Toledo. Depois do excelente Jonas e o Circo Sem Lona (2015), Borges e Paula Gomes comprovam uma vez mais o talento raro para lidar com atores mirins. A brincadeira das crianças na água e as provocações resultam em falas e comportamentos plausíveis, mesmo em face a uma câmera aparentemente muito próxima. Por mais que a imagem às vezes trema em excesso (algo percebido com mais força quando João está parado do que em movimento), ela ressalta um despojamento benéfico à liberdade dos atores.

João Pedro Dias constitui um achado, assim como era Jonas Laborda no documentário de 2015. Dotado de um olhar expressivo, ele cerra os lábios em sinal de resignação e ira, transmitindo uma infinidade de sentimentos por meio da aparência sisuda. Quando irrompe em algum sorriso dentro do circo, a admiração soa sincera, e funciona e funciona enquanto respiro para uma obra tão bruta. Os choros contidos em sinal de resistência comprovam o potencial dramático da ausência de diálogos: os dilemas são muito claros sem que os atores precisem verbalizar o que pensam. A convivência com uma figura paterna postiça, Salsicha (Vinícius Bustani) produz momentos marcantes de ternura que o pré-adolescente não consegue ter com o pai. Seria tentador investir em longos abraços, frases de encorajamento ou catarses compartilhadas. No entanto, o roteiro segura da primeira à última cena um desabafo preso na garganta. Privado da mãe, pensando em abandonar o pai e tudo o que conheceu até então, o garoto não ganha uma única cena em que possa extravasar toda a sensibilidade represada.

Mesmo assim, o roteiro é prejudicado por algumas escolhas. Filho de Boi privilegia a ambientação às interações, algo que faz falta à narrativa, sobretudo na segunda metade. Ao privilegiar o ponto de vista do protagonista pouco sociável, o filme evita representar a comunidade e desenvolver qualquer afeto real pelo circo. Conhecemos pouco sobre os outros artistas do Papa Léguas, enquanto o processo de admissão de João dentro do grupo soa estranhamente narrado e montado. Guardando a primeira apresentação do palhaço mirim para o clímax, o drama deixa a curiosa impressão de que o novato nunca é treinado na arte circense, nem admira o trabalho dos colegas. É difícil perceber o carinho do personagem por essa profissão, ou mesmo compreender de que modo o espetáculo se converte numa opção tão óbvia de fuga. As relações institucionais caras a Jonas e o Circo Sem Lona (o dinheiro para sustentar o circo, o valor dos ingressos, os estudos em paralelo às apresentações) estão ausentes, ou são citadas de passagem. Desconhecemos a relação do pai com o resto do vilarejo, o antigo trabalho de violeiro, a prática do sustento da família. A certa altura da trama, Salsicha encoraja João: “Palhaço novo no circo... O povo só fala nisso”. A frase se repete em outra cena. Ora, nunca vemos este povo, justamente, nem a repercussão do novo palhaço para além do bullying das crianças.

O filme busca um delicado equilíbrio entre a história inspiradora (vide a frase final, reiterando o discurso desenvolvido até ali) e a valorização do banal. O principal símbolo deste confronto se encontra no clímax: após longa espera pela estreia do menino, nos moldes das narrativas esportivas ou políticas (que se encaminham para a grande luta do boxeador, ou para o discurso potente diante da multidão), a autoexposição sobre o ringue-picadeiro se converte numa cena de baixa intensidade. Este não será o momento em que descobriremos o talento gigantesco e inato do garoto, tampouco uma exposição ao ridículo que o fará repensar sua vida. Pela autoimposição do naturalismo, o instante se revela agridoce e discreto, com uma luz mais escura do que o esperado (visto que o pequeno circo não teria recursos para uma produção pomposa), emoldurando ações mais inconsequentes do se imaginaria para o momento-chave da história. Borges possui evidente carinho pelo personagem principal, mas controla rigidamente a obra para não transformá-lo em exemplo de superação, nem um mártir em nome da arte. No cruzamento entre ternura e brutalidade, o longa-metragem representa uma bela estreia para o cineasta neste formato.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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