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Sinopse

Loreley é uma professora da escola primária que acaba de se mudar para o Rio de Janeiro, no apartamento herdado da família. Ela mantém encontros casuais com homens pela cidade, mas nunca conhece o amor, até cruzar com Ulisses, um egocêntrico professor de filosofia.

Crítica

Qualquer adaptação de Clarice Lispector oferece um desafio considerável ao cinema por se tratar de um universo íntimo, de sensações vorazes mas essencialmente não-imagéticas. A escritora não foi conhecida pelos personagens expansivos, nem pelas reviravoltas narrativas. Ao adaptar Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), a diretora Marcela Lordy efetua algumas escolhas estratégicas ao sucesso da empreitada: primeiro, adapta a história de amor-próprio de Loreley ao século XXI, permitindo enxergar a universalidade e atemporalidade do texto original. Segundo, evita verbalizar os sentimentos desta complexa professora primária que tenta preencher o vazio existencial com sexo, e substitui o afeto por gozo. Terceiro, escolhe para o papel principal Simone Spoladore, atriz no ápice de seu talento, capaz de transmitir uma infinidade de sensações por meio do rosto e dos gestos mínimos. Nas mãos de outro diretor e de outra intérprete, o mesmo projeto poderia se tornar estéril, ou talvez árido demais. O resultado funciona graças ao encontro entre sensibilidades próximas.

O drama oferece um excelente trabalho de luz, espaços e tempos. O grande apartamento desorganizado onde mora Loreley, em frente a uma praia carioca, é explorado com riqueza de detalhes pela fotografia crepuscular de Mauro Pinheiro Jr., além da direção de arte impessoal (visto que a personagem ainda não apossou do imóvel por completo), incluindo o uso expressivo de uma porta espelhada. O ato de admirar a paisagem pela janela adquire múltiplos significados, graças à direção e atuação: ele representa o alívio num primeiro momento, a inquietação mais tarde, e o desespero rumo ao final. A sexualidade feroz e triste da protagonista se traduz em belas sequências onde amantes nus desaparecem dentro de um único plano, ou ainda na masturbação multiplicada pelos reflexos no espelho. O sexo adquire um tratamento realista e cru, sem qualquer forma de fetichismo dos corpos. Os encontros são rápidos e inconsequentes, em coerência com os sentimentos da personagem, e parecem acentuar a falta ao invés de sugerirem a completude. Cenas como o amanhecer na sala vazia do apartamento, com a luz progressivamente iluminando dois corpos nus, são de uma beleza estonteante. É uma pena que a bissexualidade de ambos os protagonistas seja apenas mencionada ao invés de explorada dramaticamente.

A principal recompensa diante de O Livro dos Prazeres, no entanto, encontra-se na rica composição de Simone Spoladore. Ela transita entre a fobia social, o leve desconforto, a sedução, a tristeza e o ciúme com igual desenvoltura. Tudo é dito neste corpo disponível e versátil, pelos olhos que ao mesmo tempo adoram o mar e têm medo dele, amam Ulisses e o detestam, demonstram ternura e ressentimento pelo irmão. Lóri é uma personagem fascinante porque contraditória, e por consequência, bastante verossímil. Os personagens masculinos oferecem maior dificuldade aos atores porque são arrogantes, controladores e potencialmente perigosos. Os homens se convertem em fantasmas, aparecendo e desaparecendo na rua, cruzando o caminho da professora apesar das vontades dela. Felipe Rocha traz nuances ao irmão da protagonista, desempenhando bem uma figura que poderia ser detestável devido ao egocentrismo. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito de Javier Drolas, que interpreta Ulisses, a figura masculina principal. Face à pluralidade de registros de Spoladore, ele mantém o mesmo queixo erguido, os olhos sem piscar, a fala monocórdia e não projetada. Apesar de arrogante, o personagem poderia adquirir alguma variação, transitando entre o afeto altruísta e o sentimento de posse, o que talvez justificasse o apego magnético de Lóri por este “Sábio”. O ator sustenta os mesmos recursos da primeira à última cena, embora o personagem necessitasse de transformação muito mais evidente.

Devido à ampla aposta em metáforas, compreende-se que algumas sejam mais eficazes do que outras. A festa multicolorida com pessoas dançando break, ao som de violinos, funciona enquanto potente representação da fobia progressiva da protagonista. A aparição de um tucano dentro da sala de aula também consolida o afeto da professora pelas crianças. Em paralelo, a transformação do imaginário da propriedade familiar numa pintura proporciona uma sequência de intensa poesia. Entretanto, a sequência do bullying com um aluno sofre com alguns problemas de decupagem e montagem, ao passo que uma imagem giratória em tornos dos amantes, terminando numa cesta de peixes, chama mais atenção à coreografia da câmera do que ao texto. Ao menos, Lordy revela escolhas firmes. Esta é uma direção corajosa, não apenas pela duração dos planos ou pela frontalidade do sexo, mas pela multiplicidade de recursos adotados na representação dos sentimentos. A cineasta explora a paisagem do Rio de Janeiro sem idealização, ao passo que mergulha sem vaidades no apartamento com vista para o mar. As escolhas soam efetivamente construídas para a protagonista, como se toda a paisagem ao redor, incluindo os homens-espectros, fizesse parte do mundo interior de Lóri.

O Livro dos Prazeres nunca se traduz num filme “delicado”, como se costuma esperar de obras intimistas. As imagens são duras, com direito a diálogos brutais (“A solidão não é um sentimento só teu. Aguenta”). Mesmo a opção de encerrar com os dois pontos de Lispector consiste num recurso arriscado. O resultado é um drama adulto, nos vários sentidos do termo: maduro em suas escolhas estéticas, capaz de abordar sentimentos com a devida complexidade (sem transformar pessoas apaixonadas em adolescentes, a exemplo de tantos filmes românticos), privilegiando a contemplação à ação. O drama investe numa duração dos planos e uma temporalidade dos personagens muito saudável para o cinema brasileiro. Trata-se de uma via intermediária entre a rarefação excessiva do “cinema de autor” e o ritmo televisivo das produções comerciais. O mar, horizonte fundamental para as figuras mitológicas de Loreley e Ulisses, adquire um retrato ao mesmo tempo simples e forte dentro dos sonhos da protagonista. Junto da excelente Ana/Hannah (Djin Sganzerla) de Mulher Oceano (2020), Lóri se torna mais uma marcante personagem feminina do cinema brasileiro contemporâneo, buscando domar as águas sem ser tragada por elas.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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