Crítica
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Crítica
William Shakespeare é considerado um dos “pais do teatro”. Manifestação artística dividida entre o drama e a comédia, encontra na tragédia, por sua vez, origens que remontam à Grécia antiga. Esta expressão se caracterizaria como uma forma dramática ainda mais intensa, envolta pela seriedade e dignidade, tantos dos personagens como das ações por eles cometidas. Uma denominação apropriada, portanto, a um dos maiores clássicos do bardo inglês, Macbeth. Adaptado ao cinema por mestres como Orson Welles (Macbeth: Reinado de Sangue, 1948) e Roman Polanski (Macbeth, 1971), há alguns anos voltou à cena com versões contemporâneas, como as de Justin Kurzel (Macbeth: Ambição e Guerra, 2015, com Michael Fassbender e Marion Cotillard) e até mesmo uma nacional, de Vinícius Coimbra (A Floresta que se Move, 2015, com Gabriel Braga Nunes e Ana Paula Arósio). Pois bem, é chegada a vez de um dos mais bem-sucedidos cineastas da atualidade oferecer seu olhar a respeito desse texto tão repleto de nuances, provocações e denúncias. Eis o que Joel Coen faz em A Tragédia de Macbeth, obra que tanto presta reverência às anteriores, como esmiúça tal bagagem visando um amanhã não desprovido de tempestades, mas potente o suficiente para se abrigar até mesmo das piores tormentas.
Sem a presença do irmão, Ethan, no controle criativo do projeto – é a primeira vez, em quase quarenta anos de carreira, que os dois não trabalham juntos, tendo Joel se ocupado sozinho do roteiro e da direção – o Coen restante ao menos não veio sozinho à luta (afinal, de bobo não tem nada). Trouxe consigo artilharia pesada, primeiro uma companheira arregimentada no conforto do próprio lar (sua esposa, a atriz Frances McDormand, vencedora de não menos do que quatro Oscars), e depois um dos maiores – e mais respeitados – astros de Hollywood (Denzel Washington, dono de duas estatuetas douradas, dentre nove indicações – e contando!). Se o título nacional singulariza o afetado, melhor seria uma interpretação dupla: o desastre se abate não somente sobre um, mas sobre os dois membros do casal Macbeth. Enquanto ele, um senhor de posses invejáveis, admirado por nobres e colegas, se deixa levar por augúrios de dúbias interpretações, será ela, a Lady, a voz ressonante dos bastidores que tanto o impele à ação, como se deixará abater frente às inevitáveis consequências de seus atos. A dimensão do que cada um faz – e, principalmente, deixa de fazer – irá repercutir além do alcance dos seus domínios terrenos, lançando um espectro fantasmagórico a uma cobiça que começa de modo aparentemente terreno, disfarce esse que não tardará a revelar suas verdadeiras intenções.
Ao voltar para casa após longos combates, Macbeth se depara com três bruxas, que o alertam para a possibilidade de, muito em breve, ser coroado rei. Ele primeiro refuta o presságio, como se tolice fosse, para aos poucos se permitir contaminar pela ideia daquilo que nunca havia cogitado. A novidade é compartilhada com Ross (Alex Hassell, de Cowboy Bebop, 2021), que o acompanha desde a batalha, mas depois é a esposa que o ouve, se encarregando de traçar os meios para o fim já anunciado. É neste núcleo tão limítrofe entre o bom e o mau, o certo e o injusto, que começa a adentrar a luz necessária para que uma semente perversa não apenas se desenvolva, mas ganhe força suficiente para se apossar daqueles que uma vez pensaram poder controlá-la. Se foi dito que Macbeth seria o novo Duque de Cawdor, e tal previsão se confirma, por que as demais não teriam o mesmo destino? Porém, quando questionado pelas mesmas razões, o protagonista ouve do amigo: “talvez o bom que agora se verifica não tenha por intento apenas profetizar o bem, mas também esconder o mal”. Os recém alçados nobres se veem tão próximos da realeza que qualquer movimento parece denotar urgência em seus planos. Mas bastará um passo em falso para que aquilo conquistado como meritório se revele maldição irreversível.
O Macbeth construído por Washington é tanto o alento da razão como a perda dos sentidos. Não estranho aos modos shakespearianos (entre outros trabalhos, no teatro e na televisão, atuou em Muito Barulho por Nada, 1993, de Kenneth Branagh), é indisfarçável o prazer, tanto no intérprete como no seu público fiel, ao dar vida a um ser atormentado e dono de camadas profundas, distinto de muitos dos seus trabalhos recentes, como o thriller Os Pequenos Vestígios (2021), o remake Sete Homens e um Destino (2016) ou o Robert McCall de O Protetor (2014) e O Protetor 2 (2018). Desprovido dos temores de um iniciante, permite a leitura mais óbvia, da sede por mais e da ambição por concretizar uma probabilidade que jogue a seu favor, como emite os vislumbres necessários aos mais atentos para antever a angústia da perda, o sofrimento por aquilo que não está ao seu alcance e o desfrute que lhe é negado diante de complicações que fogem de um controle restrito ao campo das ideias. Pois uma vez postos em prática, também se permitem afetar pelo acaso. Nem todo ator consegue tal mergulho, e o exemplo que aqui se vê se mostra acima das mais rígidas comparações. Ainda mais diante de McDormand, também possuída por aquela que é tanto voz quanto consciência, servindo de acolhimento, mas também como provocação. É dela que emana a energia que o impulsiona, assim como sua ausência determina seu rápido desvanecimento.
Se o domínio conjurado por tal união não fosse suficiente, Coen exerce um controle ferrenho no desenho aqui exposto, indo da fotografia à direção de arte em busca do mínimo para tudo que lhe for permitido revelar. Bruno Delbonnel (dono de cinco indicações ao prêmio da Academia e parceiro do cineasta em seus longas mais recentes, como Inside Llewyn Davis, 2013, e A Balada de Buster Scruggs, 2018) vai de Carl T. Dreyer a Béla Tarr em uma concepção límpida e desprovida de matizes, evidenciando a luta de sentimentos tão antagônicos. Um duelo reforçado pela direção de arte concebida por Jason T. Clark (conhecido por seus trabalhos na Marvel em projetos como Pantera Negra, 2018, e Capitã Marvel, 2019), fundamentada através de alicerces que privilegiam o geométrico e a austeridade, eliminando, com isso, qualquer excesso que possa servir de distração. O todo vai ao mínimo para que se enalteça a palavra, e com ela, embates caros aos homens e condenados pelas entidades superiores – e por isso mesmo, tão delas se mostram próximos. A Tragédia de Macbeth vai, literalmente, do céu ao inferno em menos de duas horas de projeção, uma jornada sofrida e de não fácil digestão, mas gratificante na medida em que se revela, mesmo frente à tamanha beleza e decepção, enquanto estudo da psique humana e dos seus mais profundos conflitos.
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