Crítica
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Sinopse
Uma pequena ilha isolada é tão pacata que parece estar morta. Depois da chegada de um padre à localidade, os moradores começam a relatar circunstâncias supostamente milagrosas e presságios aterrorizantes.
Crítica
Stranger Things (2016-2022) pode ser um fenômeno e Stephen King segue como um mestre do gênero, mas há um novo nome quente em Hollywood quando o assunto é suspense e terror: Mike Flanagan. Por mais que o cineasta tenha iniciado sua carreira há mais de vinte anos, foi na última década que se tornou, de fato, conhecido, através de longas como O Espelho (2013) e Ouija: A Origem do Mal (2016). O pretensioso Doutor Sono (2019), comentada – e mal-recebida – sequência de O Iluminado (1980) pode ter sido um passo em falso, porém não capaz de eclipsar o impacto da parceria do cineasta com a Netflix, iniciada com o thriller Jogo Perigoso (2017) – baseado num romance de King, veja só – e seguida pelas minisséries A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020). O impacto criativo e cultural de ambas, que ofereceram um novo fôlego ao desgastado subgênero das “casas mal-assombradas”, o credenciou para a ainda mais ambiciosa Missa da Meia-Noite, outra série compacta, composta por apenas sete episódios, que ao mesmo tempo em que reduz seu arco dramático, aumenta o alcance dos seus feitos.
Ao contrário das duas tramas anteriores, ambas ambientadas praticamente dentro de um mesmo ambiente, dessa vez ampliou-se o campo de atuação dos personagens, localizando-os geograficamente em uma mesma cidade. Porém, não se trata de uma qualquer, mas de um pequeno vilarejo localizado em uma ilha afastada da costa. O isolamento, portanto, por mais que tenha se transformado, segue ditando muitas das regras não ditas – e também as abertamente professadas, como logo se descobrirá. São apenas algumas famílias, donas de traumas particulares que aos poucos vão sendo abordados. É curioso como, mesmo com menos tempo do que o habitual (não mais dez capítulos, como nos seus trabalhos mais recentes), Flanagan não tem pressa em revelar sobre que pretende abordar – por mais que as pistas comecem a ser espalhadas desde o episódio de estreia. Algo estranho está para se manifestar. Pode ter vindo até eles por alguns dos que há pouco retornaram, como também ter sempre estado por lá, apenas esperando pela hora certa de revelar sua real face. Um pouco de cada, porém, parece ser o mais apropriado.
Riley (Zach Gilford, de Good Girls, 2018-2021) está voltando para casa após um longo período na prisão. Mas é ele o protagonista – ao menos essa é a impressão que os realizadores querem passar – e, portanto, logo se descobrirá que não estava cumprindo pena por ser uma pessoa má. Na verdade, cometeu um erro, e foi obrigado a pagar por isso. Sua dívida com a sociedade pode até ter sido quitada, mas não se sente leve por isso. O peso dessa atitude equivocada lhe persegue, assim como também o modo como cada um dos antigos conhecidos agora o veem é mais do que um lembrete do que fez. Duas pessoas, no entanto, o recebem de braços abertos: a mãe, Annie (Kristin Lehman, de Altered Carbon, 2018), e Erin (Kate Siegel, esposa e parceira frequente de Flanagan), a ex-namorada. Há algo mal resolvido entre os dois, e esse reencontro pode ser a chance de, enfim, fazerem os devidos ajustes. Mas o título da série, de implicância religiosa, não foi escolhido ao acaso.
Quem chegou há pouco também foi o padre Paul (Hamish Linklater, de Legion, 2017-2019), enviado para substituir o antigo pároco, já bastante envelhecido, que durante uma viagem ao continente acabou adoecendo, sem condições de assumir suas antigas funções. É recebido com fervor pelos crentes mais devotos, em particular por Bev Keane (Samantha Sloyan, de Grey’s Anatomy, 2015-2016), talvez a personagem mais intrigante de toda a história. Ela se coloca como o braço direito do ministrante, mas não demora para que nela se identifique figuras menos lisonjeiras, como a castradora, a dissimulada, a impiedosa, a julgadora. É, enfim, manipuladora, o tempo todo mexendo com as cartas que tem à disposição para colocar as coisas a seu favor, de acordo com a maneira distorcida que acredita ser a certa. Esse mesmo discurso, curiosamente, vai rapidamente ser distorcido a partir do instante no qual o sobrenatural passa a se manifestar. Sim, pois aproximadamente do meio da narrativa em diante não se discute mais as expectativas dos jovens em viver em um lugar tão fechado, as crenças da mãe e da filha ou a necessidade de se respeitar o delegado que é muçulmano: o embate, agora, será mais entre os que permanecerão ou não vivos, e na melhor das hipóteses, o que estarão dispostos a abrir mão para assim se manterem – e por quanto tempo.
Flanagan pode dar um ou outro tropeço, principalmente quando decide incorrer em uma mitologia tão repleta de significados e desdobramentos sem exibir o respeito que os mais inteirados poderiam esperar. Por outro lado, é pertinente destacar o desprendimento do realizador tanto em se desfazer dos seus personagens como, também, em incorrer no grotesco e na violência explícita. Não que dois ou três capítulos sejam suficientes para criar fortes canais de identificação, mas se deparar com a partida de um ou outro que aparentava ocupar posição de destaque dentro do que se poderia apostar como relevante ao contexto proposto não deixa de provocar fortes reações – Game of Thrones (2011-2019), afinal, deixou um legado que não pode ser ignorado. Da mesma forma, o culto ao sangue e às criaturas da noite permitem outras interpretações que vão além do mero vampirismo, ainda mais por este se encontrar frente a um debate propenso ao fanatismo e menos afeito à lógica. O modo como o que no começo era apontado como uma comunidade feliz e logo se transforma em uma seita de alucinados é tão exasperante quanto próximo da realidade, muito em parte pela habilidade como os eventos que levam até esse ponto vão se encaixando uns nos outros, como um grande – e assustador – quebra-cabeças.
Dito isso, talvez o maior problema de Missa da Meia-Noite seja justamente essa falta de identificação, uma vez que todos em cena terminam por se apresentar, em uma última análise, como descartáveis. O que é posto em evidência, portanto, é que ao responsável pelo conjunto interessa mais esse cenário de caos e desamparo – ainda que um possível ‘final feliz’ possa ser vislumbrado pelos mais esperançosos – do que os dramas particulares daqueles que se viram envolvidos por tudo o que foi feito – e, mais do que isso, pelo que foi desfeito e não mais apresenta possibilidade de retorno. Entre a fé e a ausência da lógica, há um universo a ser preenchido. Muitos optarão – assim como tem sido exemplo desde o início dos tempos – pelos caminhos mais fáceis. O que também é uma boa maneira de entender como a humanidade chegou até o ponto onde se encontra. Afinal, fazer o certo exige um alto preço a ser pago.
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