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Em um roteiro tradicional de cinema, geralmente o que se observa é a apresentação dos personagens e do conflito a ser resolvido no primeiro terço da trama, o aprofundar desta crise e o desenvolver dos eventos que os unem no segundo momento, e enfim o clímax, o momento crucial da história, que abre espaço para a resolução dos problemas e encaminha os acontecimentos para um eventual final feliz. Mas o que fazer quando este trecho de maior impacto acontece logo no desfecho da primeira parte, deixando mais da metade da obra para o desenrolar dos episódios até então presenciados? Pois é exatamente o que acontece em O Talentoso Ripley, livro de Patricia Highsmith publicado em 1955. Levado ao cinema por René Clément em O Sol por Testemunha (1960), ganhou quase quarenta anos depois uma nova adaptação, menos um remake e mais uma releitura, neste O Talentoso Ripley. O resultado pega o que de melhor havia no texto original e trata de fazer as modificações necessárias para se adequar ao formato audiovisual, explorando a personalidade do protagonista – um dos personagens clássicos da literatura mundial – porém em novos contextos, ao mesmo tempo em que investiga possibilidades até então apenas vislumbradas, mas nunca percorridas a contento. O que se alcança é impressionante, principalmente no que diz respeito ao equilíbrio da trama.
A premissa já é curiosa e desperta atenção. Tom Ripley é um cara que se vira como pode. Sem família e nem (muitos) amigos, mora num cubículo e sobrevive fazendo bicos aqui e ali. Num desses, é confundido como se fosse ex-aluno de Princeton (por causa do casaco emprestado que está usando) por um rico empresário – impressão essa que não faz questão em desfazer. Por este, recebe um convite inesperado: que tal ir a Europa e se encontrar com o filho do homem, o bon vivant Dickie Greenleaf, e convencê-lo a voltar para os Estados Unidos? Afinal, o milionário acredita que os dois foram colegas, e que alguém da mesma idade possa ser bem-sucedido naquilo que ele não conseguiu. Quer o garoto de volta, pois a esposa – e mãe do rapaz – está doente, e até porque estas tais férias já se estenderam por tempo demais. Para tanto, lhe oferece um polpudo cheque, além das despesas pagas. Ripley não hesita muito antes de aceitar. Mas não pelo que vê no presente. Sua mente, o espectador irá perceber depois, está no futuro. Ripley é o tipo de sujeito que está sempre três ou quatro passos adiante no jogo de xadrez da vida. E é por isso que pegá-lo desprevenido é o grande desafio.
Assim que entra no carro, por meio da porta aberta pelo chofer enviado para encaminhá-lo até o navio pelo qual fará a dita viagem, Tom rapidamente se dá conta que é muito melhor ser Dickie Greenleaf do que ele mesmo. Ao chegar em Roma, sua primeira estada, ao se apresentar a uma recém conhecida, afirma: “Prazer, Dickie”. Tal frase lhe vem natural, nem chega a ser pensada ou ensaiada. Porém, há uma missão a cumprir. E se a recepção que encontra no vilarejo no sul da Itália onde é seu destino não é das mais afetuosas, aos poucos vai conquistando a atenção do novo amigo. Tom, no entanto, deixa surgir um misto de sentimentos dentro de si: tanto quer ser Dickie, como anseia por tê-lo na mesma proporção. A tensão homoerótica entre os dois é palpável, e em mais de um momento chega prestes a se concretizar. Mas, ao menos do lado do playboy inconsequente, o que estão vivenciando é não mais do que uma amizade. Que pode acabar da noite para o dia, bastando para tanto surgir uma nova distração. Ripley, porém, não está pronto para voltar a ser quem ele um dia foi, e a tanto custo está se esforçando em esquecer.
Eis, portanto, o ponto de virada de O Talentoso Ripley: quando se vê prestes a ser expulso daquele mundo que é tudo o que sempre quis para si, decide ir às últimas consequências, e mata o jovem Greenleaf num ímpeto assassino. A partir desse instante, Ripley não tem mais amarras, e assume a identidade do falecido. Mas há arestas no seu caminho. Marge, a namorada, quer saber o que levou o amante a lhe abandonar. Freddie, o melhor amigo, estranha esse rapaz que veio dos Estados Unidos, do qual nunca ouviram falar, e que passa a se comportar como se pertencesse ao mesmo clube. Matt Damon, como o protagonista, demonstra um domínio impressionante no desenho de uma figura anêmica, quase transparente, que vai se adaptando de acordo com as condições que lhes são impostas. Esse é o seu maior talento, uma capacidade de mutação e de se esquivar de todas as miras que lhe procuram. O filme, no entanto, perde muito com a saída de cena de Jude Law, que faz do herdeiro mimado um dos tipos mais iluminados de sua filmografia. A exuberância que transborda do seu sorriso contagiante justifica o fascínio que exerce em Ripley, gerando na audiência um entendimento a respeito dos seus atos.
A maior diferença entre livro e filme está no fato de Anthony Minghella, cineasta vencedor do Oscar por O Paciente Inglês (1996), que assina também como roteirista, dotar seu Ripley de uma consciência moral, algo inexistente na obra de Highsmith. Tom sofre por seus atos, e sabe a consequência de cada uma das suas ações. Isso, porém, não o impede de seguir agindo, eliminando qualquer um que ameace o status conquistado. A introdução de figuras como Meredith Logue (Cate Blanchett, dissimulada e perspicaz na medida certa), criada especialmente para essa versão cinematográfica, é fundamental para o desfecho almejado pelo diretor, deixando claro que o vilão, aqui na condição de anti-herói, está disposto a tudo, até mesmo abrir mão da própria felicidade, nessa busca por uma realização social. Este, portanto, é também seu maior mérito: desaparecer e se transformar, aumentando a tensão mais pelo não feito do que pelo que, de fato, leva adiante, aumentando com isso a dimensão de sua tragédia: se contido foi capaz de tudo o que foi visto, imagina o quão longe poderá ir quando estiver, enfim, solto no mundo. Com classe e imenso apreço pela elegância, tal qual o próprio personagem-título, O Talentoso Ripley oferece um vislumbre de uma mente doentia em busca de algo por muitos também sonhado: um amanhã melhor. Ainda que o preço para tanto seja nada menos do que sua alma.
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