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Sinopse

Uma jovem começa a trabalhar numa mansão como cuidadora de duas crianças aparentemente inocentes. No entanto, à medida que os dias passam, Flora e Miles apresentam comportamentos cada vez mais assustadores. 

Crítica

A decisão do roteirista Mike Flanagan em criar um universo povoado por casarões mal-assombrados parece ser uma jogada tão boa que é de se perguntar como ninguém havia pensado em algo semelhante antes. Afinal, a série de antologias A Maldição, produzida pela Netflix, se mostrou um tiro certeiro logo na sua trama de estreia – A Residência Hill (2018) – a ponto da expectativa em relação a um próximo passo dentro desse contexto ter chegado às alturas. Ainda mais se levado em conta o fato de que o cineasta nunca foi particularmente bem-sucedido em suas tentativas na tela grande – Ouija: Origem do Mal (2016) seguia padrões pré-estabelecidos, enquanto que Doutor Sono (2019) frustrou muita gente pelo tanto que prometia. É neste contexto, portanto, que A Maldição da Mansão Bly se apresenta, tentando não apenas seguir os caminhos determinados pelo tomo anterior, ao mesmo tempo em que almeja uma personalidade própria. Uma tarefa complicada, que alcança apenas em parte, a despeito dos evidentes esforços.

Muitos dos atores vistos em A Residência Hill estão de volta em Mansão Bly, porém em novos papeis, sem relação com os antigos personagens. A protagonista da vez é Dani Clayton, vivida por Victoria Pedretti – que antes aparecera como a caçula da família Crain. É ela a jovem au pair que acaba sendo contratada para cuidar de dois irmãos órfãos na propriedade que dá título à série. A inspiração é óbvia – trata-se, afinal, de uma adaptação de A Volta do Parafuso, de Henry James, que já rendeu leituras tão díspares quanto o clássico Os Inocentes (1961) ou o nacional Através da Sombra (2015), entre tantos outros. Quem a contrata é o tio das crianças, Henry Wingrave (Henry Thomas, que fora o pai dos Crain), um rico empresário sempre ocupado com seus negócios. Lá, Flora (Amelie Bea Smith, a voz original da Peppa Pig, 2020) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth) possuem como únicas companhias a governanta Sra. Grose (T’Nia Miller, de Years and Years, 2019), a jardineira Jamie (Amelia Eve) e o cozinheiro Owen (Rahul Kohli, de Supergirl, 2017-2019).

A estranheza nesse cenário, como não poderia ser diferente, é imediata. Por quê o tio se recusa a visitar os sobrinhos? Por qual razão a Sra. Grose nunca se alimenta? Qual o motivo que leva a manter metade da gigantesca casa fechada aos demais moradores? Por quê empregados tão qualificados estão envolvidos com uma atividade tão desprovida de desafios? E quais segredos esses dois irmãos guardam com tanto afinco de todos os adultos que tentam deles se aproximar? Como num jogo de xadrez, nenhuma resposta é dada de imediato, e essa é uma estratégia interessante dos roteiristas: desde o começo o susto estará presente, mas também não se demora para que algumas dessas respostas comecem a se desenhar. Para cada passo certo que é dado, no entanto, dois um falsos podem ser percebidos. É preciso estar atento ao que pode ser ganho – e também perdido – nessas trocas de olhares, relações interrompidas e, principalmente, na própria gênese pela qual se está transitando: afinal, esta é uma história de fantasmas, e desta percepção ela não irá se afastar por nem um capítulo sequer.

Algo importante a se manter em perspectiva é que A Maldição da Mansão Bly está sendo narrada – e quem se encarrega de revelá-la aos ouvidos interessados, em ambos os lados da tela, é Carla Gugino (a mãe dos Crain). Obviamente, haverá algo a ser descoberto a respeito das razões que a leva a desenrolar esses acontecimentos, muito mais lembranças do que invenções para a hora de dormir. Qual será o papel dela dentro dessa trama, afinal, e que espaços irão ocupar aqueles aos quais sua voz se destina? Há um quebra-cabeça a ser completado, e lacunas estarão por todas as partes, apenas esperando por serem preenchidas. À audiência, portanto, caberá tanto a tarefa de ocupar estes espaços, como também se antecipar a eles, usando de um olhar atento e de uma percepção aguçada para combinar não apenas o que falta, mas o que pode surgir a cada novo episódio. Dessa forma, os realizadores fazem de cada segmento – a temporada inteira possui nove capítulos – um meio e um fim, funcionando quase de modo isolado e, obviamente, também como parte de um todo mais amplo.

Assim, praticamente cada personagem ganhará um momento só para si, quando o espectador poderá acompanhar o desvendar destes passados e o que cada um enfrentou até chegar ao ponto presente. Quem é o jovem de olhos brilhantes que a nova babá vê de relance cada vez que se depara com um espelho desprotegido? E o rapaz galanteador que segue circulando pela mansão, por que ele é visto apenas por alguns, e não por todos? Uma casa de bonecas pode ser mais misteriosa do que apenas um brinquedo de crianças poderia sugerir, e quem será a responsável pelas pegadas de lama que surgem pela casa, no meio da noite, quando menos se espera? Há diversos enigmas a serem resolvidos, e a renovação de cada um destes desenlaces é suficiente para manter a energia do conjunto em alta. Nada particularmente original, é fato, mas aqui revisitado com tamanho cuidado que não deixa de causar uma impressão mais positiva do que se poderia esperar. Mesmo assim, há também percalços, como um elenco irregular – Oliver Jackson-Cohen, como o aproveitador Peter, é uma presença tão irritante quanto monótona, enquanto que os pequenos também teriam se beneficiado de uma maior preparação, ainda mais diante da imensa responsabilidade que carregam – e uma perfeição nos cenários, iluminação e enquadramentos que, por vezes, beira a artificialidade.

A mesma fórmula que se mostra tão acertada na maioria das vezes, é também a que deixa a desejar em um momento ou outro. Assim como é fundamental descobrir quem foi a garota anterior encarregada pelas crianças e qual foi seu destino, os episódios sobre o triângulo amoroso entre os dois irmãos e a esposa de um deles e, principalmente, aquele sobre as duas irmãs herdeiras da mansão, se mostram enfadonhos em suas redundâncias e obviedades, indo além do necessário ao tentarem alcançar seus propósitos. A Maldição da Mansão Bly, assim, se revela repleta de boas ideias, porém por vezes incapaz de dosá-las na medida esperada para que se mostrem tanto convincentes como capazes de proporcionar um mergulho mais intenso. Isso, aliado a uma necessidade de atar todas as possíveis pontas soltas, atendendo a cada detalhe da maneira mais didática possível, termina por eliminar muito do prazer que o caminho até o seu desfecho havia gerado. Assim, atenua uma tensão que tinha tudo para ser ainda mais prazerosa dentro do contexto proposto.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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