“Sim, já ouvi falar de Porto Alegre, São Paulo, do Rio de Janeiro, é claro. Minha namorada é brasileira, de Curitiba. Então, conheço, sim, um pouco do Brasil”. Assim começou minha conversa com o alemão David Preute, que estreou como realizador com o thriller A Grande Fraude. O filme, já disponível no Brasil no Looke e em plataformas de aluguel sob demanda (VoD), tem como protagonista Tom Walker (o português Paulo André Aragão, ator radicado em Londres), um jovem ambicioso que é contratado para trabalhar em um banco de investimentos. Porém, com a crescente cobrança de metas e contratos a serem realizados, começa a tomar decisões nem sempre aconselháveis, que prometem um retorno rápido, ainda que não de confiança. Resultado de uma pesquisa desenvolvida ao longo de anos, o filme teve sua primeira exibição no Hofer Filmtage International Film Festival, na Alemanha, e desde então foi lançado em diferentes países, como Equador e Reino Unido. Motivado por toda essa repercussão, o cineasta recebeu o Papo de Cinema para uma conversa inédita e exclusiva, durante a qual falou sobre sua inspiração para essa história, os paralelos entre a ficção e a vida real e sua relação com o Brasil. Confira!
A Grande Fraude começa com um aviso: “inspirado em verdades reais”. O que você quis dizer com isso?
As ‘verdades reais’ a que me refiro é esse fenômeno que chamamos de ‘rogue traders’, os negociadores fantasmas, por assim dizer. É algo dito pelos bancos, mas que considero ser uma mentira, como se fossem apenas indivíduos que, por conta própria, perdem a noção e começam a perder bilhões de dólares. É a mesma desculpa que dão cada vez que isso acontece, como se fosse culpa de apenas um, e não de todo um sistema. “Nós não sabíamos o que estava acontecendo, foi tudo culpa dele”, é o que invariavelmente alegam. “Não tivemos nada a ver com isso”. Como se fosse possível! Por isso achei que seria interessante começar desse jeito, apontando para essas ‘verdades reais’, até mesmo como um posicionamento meu enquanto cineasta. E funciona também como estratégia de marketing, pois realmente desperta curiosidade.
O mundo financeiro exerce forte fascínio na ficção, por mais que às vezes soe incompreensível, com tantos números, estatísticas e estratégias. Você é também roteirista, então como foi tornar a linguagem do filme acessível a todos?
Este foi o maior desafio que tivemos. Aliás, como você mesmo mencionou, é um problema com o qual qualquer história sobre finanças precisa lidar. Lá no começo, quando me sentei com o meu produtor, Fabian Carl, disse a ele: “há duas formas de fazermos isso: ou tentamos diminuir os diálogos mais específicos e deixar o menos complicado possível, ou vamos num sentido oposto, e de forma agressiva colocamos todas as informações que temos em cena, mas de uma maneira divertida, que entretenha, e tornamos isso parte do show”. E foi o que fizemos com a figura da narradora. A moça da limpeza. É por isso que ela existe.
Essa é uma escolha narrativa curiosa, a presença de uma narradora. Qual era a sua intenção com a presença dessa figura?
Foi o que pensamos no início: que tal contarmos essa história de uma maneira que ela nunca saísse do nosso controle? Assim conseguimos determinar o que o espectador fica ou não sabendo, ou quando determinada informação será divulgada. Lembro, ainda durante a escrita do roteiro, de comentar: “acho que precisamos de algo como um narrador”, e um dos produtores me respondeu: “é exatamente sobre isso que venho falando”! (risos) Era um ponto de vista interessante, mas quem poderia ser esse personagem? A moça da limpeza, que também trabalhasse naquele banco, se revelou uma ótima escolha. Afinal, ela tem todas as chaves, pode entrar em qualquer um daqueles escritórios. Ninguém questiona a presença dela no prédio. Ela está o tempo todo observando, vê tudo que acontece, ao mesmo tempo em que ninguém a percebe. E tem outro lado, é uma dinâmica do tipo trabalhador versus o banco.
Ela permite também uma outra camada de entendimento. Afinal, ela pode ou não estar ali, ser de fato um personagem ou apenas uma figura de linguagem, de comunicação apenas com o espectador.
Exatamente. Pensei nisso também. Porém, durante o processo de escrita, cada vez mais me perguntava: “e se ela de fato existisse?”. Ou se não fosse real? As duas possibilidades existem. É, afinal, a maneira que o filme encontra de se comunicar com quem o está assistindo. Ela só fala com o espectador, nunca interage com nenhum outro personagem. Afinal, cada uma daquelas figuras é baseada em um tipo que realmente existe na vida real. São personagens inspirados em um ou em diversas pessoas. Mas não ela. A faxineira é completamente ficcional.
Ainda neste tópico, volta e meia vemos filmes sobre esse tema. Há, por exemplo, um de 1999 com o mesmo título, estrelado por Ewan McGregor (no Brasil, entretanto, o título é apenas A Fraude). Quais foram as referências ao criar A Grande Fraude?
Certo dia fui surpreendido com a notícia de que uma estação de tv aqui na Alemanha havia recebido uma carta – veja bem, uma carta física, enviada pelo correio – de alguém que tinha assistido ao filme e gostado tanto a ponto de redigir uma lista de outros filmes e livros que acreditava terem servido de inspiração para essa história. Quando me deparei com os títulos citados, percebi que havia visto cada um daqueles filmes e lido todos aqueles livros! Mas, vamos lá, acho que o filme que mais me inspirou foi Margin Call: O Dia Antes do Fim (2011), principalmente em relação a como eles comunicam as questões financeiras, acreditando que o espectador seguirá atento à história, mesmo sendo ela complicada. A Grande Aposta (2015), é claro, por sua narrativa envolvente e que mostra que um tema como esse pode também ser divertido. E muitos livros escritos por banqueiros. Um, em particular, foi Cityboy: Beer and Loathing in the Square Mile, de Geraint Anderson, no qual ele descreve suas experiências vivendo em Londres e no mundo financeiro. E não era um cara desse meio, ou seja, é o relato de um estrangeiro, por assim dizer, que por acaso conseguiu esse trabalho e por pouco não foi engolido pelo sistema.
Muito do filme está sob responsabilidade do protagonista, interpretado por Paulo Aragão. Com esse nome, fiquei me perguntando se não seria um ator brasileiro…
Até esse momento sigo confuso em relação à nacionalidade dele. Acredito que tenha nascido em Portugal, mas vive em Londres e tem cidadania inglesa, se não estou enganado. Mas a família vive em Lisboa, e ele fala português fluentemente. Infelizmente, pelo que sei, não tem laços com o Brasil (risos).
Como você chegou a até ele e o que o levou a escolhê-lo?
Não sei o quanto você sabe sobre os bastidores desse filme, mas ele nasceu como minha tese de conclusão de curso, na faculdade de cinema. Foi feito com algo em torno de 200 mil euros, o que é bastante dinheiro, mas, para um filme, é quase nada. Ou seja, não tínhamos grana para contratar uma agência de elenco profissional. Então comecei a procurar em sites de atores na Inglaterra. São centenas de perfis. Mais ou menos sabia o que estava procurando, pois era inspirado nessa história real. Tinha que ser um tipo específico. Queria um homem negro, por exemplo. O olhar precisava ser marcante. Até que me deparei com o Paulo, que é muito parecido com a pessoa que viveu essa experiência. Se ele soubesse atuar, portanto, seria o meu escolhido. E assim foi. Outra questão é que tudo aconteceu durante a pandemia de Covid-19, não se podia viajar, minha entrevista com ele foi por zoom. Foi a primeira vez dele como protagonista, mas aceitou bem o desafio.
Quais eram suas orientações no set de filmagens?
Basicamente, bastava ele ser natural. Afinal, o havia escolhido pelo jeito que ele era. Não precisava mudar em nada. Paulo é, na vida real, um cara daquele jeito, como você vê no filme. Muito brilhante, mas um tanto tímido. Não é o tipo que chama todas as atenções para si. Então, é claro, lhe dei pequenas orientações, sempre que necessário, mas na maior parte do tempo bastava que fosse ele mesmo que já daria certo. Sem pressão, sem pensar demais. Dizia: “serei seu amigo, mas não o seu melhor amigo”. Ou seja, era importante mantê-lo relaxado, mas se tivesse que dar um puxão de orelha aqui ou ali, assim o faria.
A Grande Fraude apresenta uma narrativa enxuta, que vai direto ao ponto. Como chegou a esse formato? A ideia era “menos é mais”, ou seja, atingir o máximo de potencial com o mínimo de distrações?
É, posso afirmar que foi isso mesmo. Afinal, sabíamos que não teríamos orçamento para qualquer outra coisa além da história que queríamos contar. Tudo o que queria era responder à questão: “você vê pessoas perdendo 3 bilhões de dólares. Como isso é possível?” Isso era o que me movia. Depois de assistir ao filme, era importante que você tivesse uma ideia do que se passa nesse cenário. Todo o resto não me interessava. Sei que não conseguiria mostrar como era a vida dessas pessoas em Londres, ou suas casas milionárias. Meu foco era no seu horário de trabalho, quando estava dentro do banco. Por isso havia, basicamente, um único set. Tive que economizar ao máximo para que o filme conseguisse ser feito.
Os créditos finais são chocantes, quando são citados diversos casos similares a esse, mas na vida real e ao redor de todo o mundo. Por qual razão conhecer essa história era tão importante para você?
Apesar de tantos outros filmes e livros nesse universo, descobri que sou completamente fascinado pelo assunto. Sempre me perguntei: “o que posso acrescentar a tudo que já foi dito a respeito?”. Muitas histórias são sobre ganância, como O Lobo de Wall Street (2013), sobre pessoas que crescem muito além do esperado, e depois vem a queda. Isso já foi feito por Martin Scorsese, quem sou eu para querer fazer algo parecido? (risos) Precisava, portanto, encontrar uma outra arena, um campo de batalha que ainda não tivesse sido explorado. Por isso me chamou tanta atenção os tais ‘rogue traders’.
Então você está com planos de vir ao Brasil ainda neste ano?
Pois é, será a minha primeira vez. Vamos à Curitiba, que é onde a minha namorada nasceu. Quer dizer, ela é de Pato Branco, no interior do Paraná. Mas devemos visitar ainda o Rio de Janeiro, Florianópolis e Foz do Iguaçu. Estou bem empolgado. Ouvi coisas maravilhosas a respeito do Brasil ao longo dos anos, então estou bem curioso.
E o cinema brasileiro, o que conhece?
Conheço um pouco. Tropa de Elite (2007) é um filme que gosto muito. Lembro também de Cidade de Deus (2002). Certa ocasião fui apresentado ao Wagner Moura, é um cara fantástico. Um diretor muito interessante é o Kleber Mendonça Filho. Há pouco vi Bacurau (2019), e fiquei muito impressionado.
Como espera que o espectador brasileiro receba A Grande Fraude?
Posso ser sincero? Nunca imaginei que o meu filme sequer seria exibido na América do Sul ou em qualquer outro lugar além da Europa. Minha expectativa, quando o fiz, era que umas 10 mil pessoas assistissem. Se isso acontecesse, já me daria por satisfeito. Quando uma grande estação de televisão aqui na Alemanha se interessou pelo projeto, foi o primeiro ponto de mudança: “ok, mais gente irá ver”, foi o que pensei. Mais de dois milhões de pessoas já assistiram aqui no meu país. Porém, quando o meu distribuidor internacional me contou que os direitos haviam sido adquiridos no Brasil, Colômbia, Paraguai, México, Taiwan… isso é mais do que jamais imaginei! É muito maluco! Sei que no Brasil está disponível no Looke e em plataformas sob demanda. Os pais da minha namorada, que não falam inglês, assistiram ao filme em uma versão dublada em português, e achei isso incrível. E gostaram, então algo certo devo ter feito (risos)!
Entrevista feita por zoom entre Brasil e Alemanha em abril de 2024
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