O drama A Febre, de Maya Da-Rin, foi o grande vencedor da quinquagésima segunda edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, iniciada no último dia 22 de novembro. A cerimônia de premiação ocorreu na noite de ontem, 30, no Cine Brasília, no Distrito Federal. Dos sete filmes apresentados na mostra competitiva nacional de longas-metragens, apenas quatro deles foram premiados em ao menos uma categoria. Os três restantes terminaram ignorados pelo júri oficial, refletindo o sentimento que já vinha sendo percebido desde suas exibições, durante a semana, quando a disparidade dos seus resultados artísticos haviam colocado em xeque até mesmo o trabalho dos curadores, levantando questionamentos se outros títulos não poderiam ter ocupado seus lugares e o que havia sido levado em consideração para a inclusão de títulos tão carentes de méritos.
A Febre ganhou cinco candangos: Melhor Filme, Direção, Ator (Régis Myrupu), Fotografia e Som. Premiado anteriormente nos festivais de Chicago (Melhor Direção), Locarno (Ator e Prêmio da Crítica), Janela do Recife (Som), Mar Del Plata (Filme), Pingyao (Filme) e Thessaloniki (Prêmio Especial do Júri), tal consagração apenas confirmou a expectativa levantada no momento do anúncio da sua seleção. Filme forte e sensível, urgente para os tempos atuais pelos quais o Brasil está passando, é um bom retrato de uma parcela que sistematicamente é ignorada pelas políticas públicas do país. Seu acolhimento só não foi maior porque dividiu os principais troféus com o documentário brasiliense O Tempo que Resta, de Thais Borges, que levou do júri oficial o candango de Melhor Roteiro (uma decisão que causou surpresa até na realizadora), além de ter sido escolhido o melhor do festival pelo Júri Popular e pelo Júri da Crítica (Prêmio Abraccine).
Outro forte concorrente era Piedade, de Claudio Assis, cineasta que já havia sido premiado em Brasília com três outros filmes (Amarelo Manga, 2002, Baixio das Bestas, 2006, e Big Jato, 2016). Desta vez, no entanto, se lhe escaparam as categorias principais, ao menos ele se viu agraciado com os candangos de Melhor Direção de Arte, Ator Coadjuvante (Cauã Reymond – um dos atores mais populares do Brasil, já premiado nos festivais de Miami, Los Angeles, Natal e Cine Ceará) e com o Prêmio Especial do Júri. Mais lembrado foi a comédia adolescente Alice Júnior, de Gil Baroni, que terminou a noite com quatro troféus: Trilha Sonora, Montagem, Atriz Coadjuvante (Thais Schier) e Atriz (Anne Celestino). Chama atenção que as duas intérpretes são novatas no cinema. Outra curiosidade que merece ser destacada pela questão de representatividade é que Brasília, com esta premiação, ao mesmo tempo reconheceu um ator indígena e uma atriz transexual como os melhores do ano, um feito inédito em seus 52 anos de história.
Perdendo o controle
Se ter optado por deixar os longas O Mês que Não Terminou, de Francisco Bosco e Raul Mourão, Loop, de Bruno Bini, e Volume Morto, de Kauê Telloli, à margem dos escolhidos em absolutamente todas as categorias faz muito sentido, outras decisões do júri oficial não pareceram muito lógicas. Presidido pelo cineasta Cacá Diegues, entre os avaliadores estavam ainda o jornalista e escritor Artur Xexéo, a produtora Bianca De Felippes, a atriz Bruna Linzmeyer, a realizadora Carmen Luz, o diretor Jimi Figueiredo e o crítico de cinema Pablo Villaça. E dentre as decisões do grupo, causou estranheza eles terem ignorado completamente o desempenho arrebatador de Fernanda Montenegro, por Piedade. Principal intérprete feminina do filme, ainda que em posição secundária dentro da trama, ela poderia ter sido escolhida tanto como Melhor Atriz ou como Melhor Atriz Coadjuvante que não seria um equívoco. Ou mesmo uma menção honrosa, que também cairia bem, dado o seu caráter como maior estrela do cinema brasileiro. Se a escolha de Anne Celestino tem também um posicionamento político, apontarem sua colega de elenco, Thais Schier, como melhor coadjuvante, é surpreendente, pois mesmo nomes como Rosa Peixoto (A Febre) e Branca Messina (Loop) possuíam desempenhos superiores.
Nada, no entanto, foi mais provocador (no pior sentido) do que a decisão aparentemente gratuita e inesperada do júri em conceder duas menções honrosas a filmes que nem estavam na competição! Um feito praticamente inédito no mundo todo, afinal, o grupo havia sido convocado para avaliar apenas sete longas-metragens, mas acabou interferindo em outras obras exibidas na programação, elencando favoritos pessoais e deixando de lado outros que, na maioria das vezes, nem sequer chegaram a ser vistos (afinal, não havia obrigatoriedade para tanto). Se Um Filme de Verão, de Jo Serfaty, não chega a ser tão surpreendente (já havia sido premiado na Mostra de Tiradentes), o reconhecimento oferecido a Boca de Ouro, de Daniel Filho, é tão triste quanto absurdo. Afinal, o primeiro fora projetado dentro de uma mostra paralela, chamada Novos Realizadores, que contava com quatro longas – quem garante que os sete jurados assistiram a todos os selecionados? – mas o segundo fora exibido em condição Hors Concours – nomenclatura de origem francesa que, em bom português, significa “fora de competição”. Se a própria organização e os curadores disseram que esse filme não merecia ser avaliado para a premiação, por qual motivo o júri optou por seguir esse caminho contrário? Teria o nome “Daniel Filho” pesado tanto assim?
Confusão aumenta entre os Curtas
O melhor curta-metragem nacional, dentre os 14 concorrentes deste ano, foi Rã, de Júlia Zakia e Ana Flavia Cavalcanti. Curiosamente, este mesmo filme não foi premiado em mais nenhuma categoria, nem pelo júri oficial, muito menos pelos júris paralelos. O grupo formado pela crítica de cinema Lorenna Montenegro, pelo cineasta Takumã Kuikuro, pelo realizador uruguaio Carlos Del Pino, pelo crítico de cinema e pesquisador André Dib, e pela diretora de fotografia Kátia Coelho assumiu uma postura no mínimo ousada, pois se por um lado afirma que “o melhor em tudo não precisa ser melhor em nenhum quesito individual”, por outro levanta dúvidas sobre como pode ser o melhor, se não tem o melhor roteiro, a melhor direção, a melhor montagem ou as melhores atuações, por exemplo? Em certames como o de Cannes, por exemplo, é uma regra: salvo raríssimas exceções, quem ganha a Palma de Melhor Filme não será premiado em mais nada, pois seria também um reconhecimento “ao conjunto da obra”, o que o tornaria inelegível nas demais disputas. Em Brasília, no entanto, tal diretriz não existe.
Os curtas mais premiados foram A Nave de Mané Socó, de Severino Dadá, que levou os candangos de Melhor Som, Montagem e Ator (o próprio Severino Dadá), e Carne, de Camila Kater, escolhido como Melhor Roteiro, Júri Popular e Júri da Crítica (Prêmio Abraccine). Sabrina Fidalgo, de Alfazema, foi agraciada como Melhor Direção (o curta ganhou também como Melhor Trilha Sonora), enquanto que Parabéns a Você, de Andreia Kaláboa, foi a Melhor Direção de Arte e Fotografia. A Melhor Atriz foi a veterana Teuda Bara, por Angela, enquanto que Sangro, de Tiago Minamisawa, Bruno H Castro e Guto BR, ganhou o Prêmio Canal Brasil de exibição.
Curadoria e (falta de) organização
É importante ressaltar, nesse momento em que o 52o Festival de Brasília de Cinema Brasileiro chega ao fim, que muitos dos problemas verificados no evento deste ano poderiam ter sido evitados caso a curadoria tivesse exercido um olhar mais rígido sobre a seleção. O cineasta Marcus Ligocki Jr., as jornalistas Anna Karina de Carvalho e Flavia Guerra, a subsecretária de economia criativa do DF Erica Lewis e o crítico de cinema Tiago Belotti formavam a comissão de seleção de longas, que ofereceu ao público um conjunto, no mínimo, anacrônico. Dos sete longas apresentados, dois eram escolhas óbvias – Piedade, de Claudio Assis, um veterano do festival, cujo novo trabalho estava sendo aguardado com ansiedade, e A Febre, de Maya Da-Rin, filme que vinha de uma consagração internacional e buscava um espaço de destaque no cenário cinematográfico brasileiro. Não por acaso, estes foram também os melhores do conjunto.
Dentre os cinco demais, todos eram passíveis de questionamentos. Dois eram produtos assumidamente televisivos – os documentários O Mês que Não Terminou, encomenda do Canal Curta, e O Tempo que Resta, que só se tornou possível graças a uma parceria com a GloboNews. O juvenil Alice Júnior, que apesar de ter sido escolhido há muito tempo, foi prejudicado pelo adiamento do festival, pois agora, no final de novembro, estava já em seu quarto festival consecutivo – após ter passado pelo Festival de Vitória, pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e pelo Mix Brasil (onde, inclusive, fora premiado). Mas nada pior do que Loop e Volume Morto, duas obras de gênero que assumem posicionamentos narrativos bastante problemáticos. O primeiro tem como protagonista um justiceiro que defende que “bandido bom é bandido morto”, além de ser baseado num amontoado quase interminável de clichês e soluções tão óbvias quanto previsíveis, enquanto que o segundo, ao propor uma discussão entre pais e uma professora, termina por desenhar uma trama de abuso feminino com um homem ameaçando três mulheres (inclusive com cena de estrangulamento e tortura). Como se percebe, nenhum dos dois merecia esse espaço de destaque.
Por outro lado, longas como Rodantes, de Leandro Lara, e A Colmeia, de Gilson Vargas, ambos exibidos na paralela Novos Realizadores, certamente possuíam qualidades suficientes para obterem maior visibilidade. Outras apostas, como o citado Boca de Ouro – uma adaptação equivocada do clássico de Nelson Rodrigues – também causaram desconforto, assim como os exibidos nas sessões de abertura e de encerramento. O primeiro, O Traidor, trata-se de uma coprodução entre Brasil e Itália, mas é falado majoritariamente em italiano – tanto que é o representante oficial do país no Oscar 2020. Não que seja um filme ruim, mas soou estranho ser exibido logo na primeira noite de um festival dedicado ‘ao cinema brasileiro’. Já o segundo, o documentário Giocondo Dias: Ilustre Desconhecido, reflete o mesmo caso já comentado a respeito de Daniel Filho – assinado pelo veterano Vladimir Carvalho, ocupou esse lugar de honra muito mais pelo currículo do realizador do que pelos méritos verificados em tela (se é que existem).
Expectativa?
O 52o Festival de Brasília chegou ao fim, mesmo que aos trancos e barrancos. Acusações de favoritismo entre os curadores, gritos de protesto, tentativas de censura, levantes a favor das vozes femininas, negras e LGBT e uma busca por diálogo de um lado, e uma perceptível falta de compreensão do outro, marcaram toda a programação. É de se esperar – e torcer, acima de tudo – que tais ocorrências sirvam como aprendizado, e que em 2020 tenhamos um festival mais forte, consciente e, acima de tudo, feito de e para todos.
Confira a seguir a lista completa de premiados:
Mostra Competitiva de Longas-metragens
FILME: A Febre, de Maya Da-Rin
DIREÇÃO: Maya Da-Rin, por A Febre
ATRIZ: Anne Celestino, por Alice Júnior
ATOR: Régis Myrupu, por A Febre
ATRIZ COADJUVANTE: Thais Schier, por Alice Júnior
ATOR COADJUVANTE: Cauã Reymond, por Piedade
ROTEIRO: Thaís Borges, por O Tempo que Resta
FOTOGRAFIA: Bárbara Alvarez, por A Febre
MONTAGEM: Pedro Giongo, por Alice Júnior
DIREÇÃO DE ARTE: Carla Sarmento, por Piedade
TRILHA SONORA: Vinicius Nisi, por Alice Júnior
SOM: Felippe Schultz Mussel, Breno Furtado, Emmanuel Croset, por A Febre
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI: Claudio Assis, por Piedade
JÚRI POPULAR: O Tempo que Resta, de Thaís Borges
JÚRI DA CRÍTICA (PRÊMIO ABRACCINE): O Tempo que Resta, de Thaís Borges
MENÇÃO HONROSA: Boca de Ouro, de Daniel Filho, e Um Filme de Verão, de Jo Serfaty
Mostra Competitiva de Curtas-metragens
FILME: Rã, de Júlia Zakia e Ana Flavia Cavalcanti
DIREÇÃO: Sabrina Fidalgo, por Alfazema
ATRIZ: Teuda Bara, por Angela
ATOR: Severino Dadá, por A Nave de Mané Socó
ROTEIRO: Camila Kater e Ana Julia Carvalheiro, por Carne
FOTOGRAFIA: João Castelo Branco, por Parabéns a Você
MONTAGEM: André Sampaio, por A Nave de Mané Socó
DIREÇÃO DE ARTE: Isabelle Bittencourt, por Parabéns a Você
TRILHA SONORA: Vivian Caccuri, por Alfazema
SOM: Guma Farias e Bernardo Gerbara, por A Nave de Mané Socó
JÚRI POPULAR: Carne, de Camila Kater
JÚRI DA CRÍTICA (PRÊMIO ABRACCINE): Carne, de Camila Kater
PRÊMIO MARCO ANTONIO GUIMARAES: Chico Mendes: Um Legado a Defender, de João Inácio
PRÊMIO CANAL BRASIL: Sangro, de Tiago Minamisawa, Bruno H. Castro e Guto BR
MENÇÃO HONROSA: Ari y Yo, de Adriana de Farias
A lista completa, com os vencedores também da Mostra Brasília BRB, está disponível no site oficial do festival.
O Papo de Cinema foi convidado oficial do 52o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
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