Crítica


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Sinopse

Justino, um indígena de 45 anos, do povo Desana, é vigilante do porto de cargas de Manaus. Enquanto sua filha se prepara para estudar Medicina na capital, ele é tomado por uma febre misteriosa.

Crítica

O corpo tenta reagir, mas não mais consegue. É algo que vem do nada, que surge inesperado, que chega sem pedir licença. A Febre está por todo o corpo do seu protagonista, o índio urbano Justino (Regis Myrupu, em atuação mimetizante), mas também vai se espalhando pelos olhares e reflexões de sua audiência, tão lentamente que, quando se percebe, não há mais o que fazer. Maya Da-Rin tem longo histórico no cinema, nas mais variadas funções, e tais experiências são mais do que comprovadas nesse seu primeiro passo como realizadora, pois entrega um cinema maduro, não desprovido de falhas, mas que as usa a seu favor. É um filme difícil, que não terá muitos adeptos entre o público comercial, mas que resguarda valor diante de uma audiência curiosa, pronta para ser instigada até mesmo pela inércia dos acontecimentos.

Justino há muito deixou sua aldeia, e agora luta, como qualquer outro brasileiro, para se sustentar na cidade grande. O filho se adaptou ao ritmo do homem branco, a filha está na busca por uma vida melhor. A mãe e esposa não mais existe, porém se foi não sem deixar marcas. E aquele que tudo começou, segue na batalha diária. O ônibus lotado, as muitas horas de trabalho, o serviço mal remunerado, o preço por não ser qualificado o suficiente. Ele está firme, sem baixar a cabeça, mas também evitando o confronto. Responde rápido, engole a condescendência dos estranhos, aceita sem responder as ofensas disfarçadas. Mas tudo aquilo não deixa de estar dentro dele. Vai somando, e sem ter para onde ir, termina por contaminá-lo. O corpo paga pelo que a mente sofre.

O homem faz de tudo para tirar o indígena do lugar que sempre foi dele. Quando esse finalmente abandona sua terra para tentar se adequar, é apenas para descobrir que nunca haverá um novo espaço para chamar de seu. O branco tenta tratar do estranho recém chegado com remédios e acolhimento, mas é apenas passageiro, nenhum desses movimentos é feito para perdurar. A transitoriedade destas situações são tão constantes que passam a ser parte de uma rotina de abraço e repulsa. O discurso é bonito, repleto de gerúndios e intenções mal disfarçadas, mas por trás há apenas uma inconformidade com aquilo que reluta em aceitar a responsabilidade. A febre que se apossa do protagonista não é motivada por um vírus, por um mal estar passageiro ou por uma leve indisposição. É reflexo de algo muito maior e mais sério. Resultado do que não se vê nem combate, apenas entende e descobre como lidar.

As frutas que ficam perdidas pelo caminho são apenas parte de uma trajetória tão igual para tantos, mas ainda assim individual em sua dor. Relações vão sendo construídas entre os que ficam, e assim como os que são atendidos hoje, os que prestam assistência também deverão se preparar para partir. É importante sonhar com um passado para o qual não há mais como voltar, pois o lugar ainda existe, mesmo que no real ou apenas na lembrança. O imaginário vai ganhando força, e o olhar perdido entre contêineres idênticos uns aos outros, assim como as ruas pelas quais percorrem ou as casas onde se abrigam, servindo não mais como lares, mas depositórios de corpos cansados, já sem forças para lutar. A febre, portanto, é tanto um sinal de perigo como um alerta de mudança. Há muito o que ser feito, pois apenas os que não se mexerem é que acabarão ficando para trás.

Maya Da-Rin não tem pressa diante da história que se propôs a contar, até porque está mais interessada nos reflexos e sentimentos que conseguir emular em sua audiência a partir das pequenas e simples cenas que reúne do que em se ocupar de uma narrativa mais convencional, com início, meio e fim – ainda que essa exista, sim. Regis Myrupu é tanto o rosto como a alma de um filme longe de banal, mas que lida com tamanha delicadeza diante de cada elemento que escolhe por trabalhar. Aqueles que vem e os que vão, o se deixar perder e a luta desesperada para se encontrar, o que se esconde na mata e o que a escolhe justamente para desaparecer, não de si mesmo, mas dos olhos de quem o observa de fora, à uma distância aparentemente segura, sem conhecimento nem propriedade, mas, sim, paciência e energia suficiente para depreender que o caminho é único, seja de um ou de muitos. A Febre tem força, é imperiosa, pode até tardar, mas quando vem, seu chamado termina por falar mais alto. Ignorá-la, portanto, não é mais uma opção. É preciso partir, pois só assim será permitido permanecer.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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