O centro das atividades econômicas e políticas do Brasil foi transferido do Nordeste agrário ao Sudeste extrativista com o ciclo da exploração de Minas Gerais nos idos do século 18. Porto de escoamento, o Rio de Janeiro se transformou na capital do país em 1763. Já o cinema chegou de navio por aqui em 1896. Dentro dessa perspectiva histórica, há uma dificuldade de capilarizar a Sétima Arte nesse país de dimensões continentais. Ao lado de São Paulo, a Cidade Maravilhosa foi uma das primeiras a consolidar um circuito de exibição sedentarizado nos anos iniciais do século passado – antes, as projeções eram basicamente itinerantes. E sabem porque isso aconteceu? As metrópoles sudestinas foram pioneiras no abastecimento de energia elétrica estabilizada. Outras regiões da nossa nação demoraram a conseguir entrar no negócio cinema, com destaque aos chamados Ciclos Regionais (Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, etc.), que mostraram articulação para a produção fora do eixo Rio-São Paulo quando o cinema ainda não falava. Pensando nessa centralização de investimentos, não chega a ser surpreendente (embora sintomático e triste) que apenas em 2021 tenha sido lançado o primeiro longa alagoano realizado a partir de editais de financiamento. Cavalo é esse desbravador.
Dirigido por Raffhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, Cavalo trilhou bons caminhos. Depois da première no Festival de Tiradentes em 2020 – quando a seleção foi presencial (bons tempos) –, passou por outros eventos colecionando elogios e atenções. “Ao longo do filme, artistas dançam, efetuam performances, escutam música, ensaiam. As canções vão da ritmada dança para os orixás ao rap, com direito a uma canção gospel escutada por um artista homossexual ao lado da mãe religiosa. O projeto narra uma configuração social conflituosa, filtrada pelo olhar clemente e progressista das artes. (…) Cavalo consegue unir a apreensão do real, a representação do mundo e a criação poética num mesmo registro, etéreo sem ser abstrato demais, conferindo protagonismo a corpos, vozes e identidades marginalizadas dentro de um contexto de pura beleza estética”, conforme consta na crítica do Papo de Cinema escrita por Bruno Carmelo. Cavalo entrelaça performance, dança e rito em três eixos narrativos distintos, transitando entre ficção, documentário e experimental. E vale explicar aos que não sabem: Cavalo é também o termo usado nas religiões afro-diaspóricas, tais como a Umbanda e o Candomblé, para denominar praticantes capazes de receber entidades em seus corpos. Então, um dos desejos do longa que enche Alagoas de auspícios é o acesso à ancestralidade por meio da expressão corporal. O resultado é um bailado.
Cavalo foi contemplado no Prêmio Guilherme Rogato, da prefeitura de Maceió, e contou com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para ser realizado. A origem do financiamento é o edital Arranjos Regionais da Ancine. E esse incentivo à descentralização infelizmente não existe mais na agência governamental. Lamentos à parte, pode-se dizer que existe um movimento interessante entre os criadores alagoanos para tornar o estado um dos protagonistas da produção de cinema no Brasil. Cavalo é fruto da articulação que rendeu também excelentes curtas-metragens. Há cerca de 10 anos houve o lançamento do primeiro edital público de fomento à produção local. Mesmo tímida, a iniciativa permitiu o início da mudança. Antes, Alagoas era visto como um berço privilegiado, cenário para grandes filmes, tais como São Bernardo (1971), de Leon Hirszman, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Mas, isso está mudando. “Em se tratando de um estado onde não existe sequer um curso de audiovisual ou cinema em nível universitário, e onde as políticas públicas de apoio ao setor ainda são frágeis e marcadas por incertezas e soluços, chama a atenção que o setor tenha atingido tamanha capacidade de articulação e afirmação, fazendo crer que a produção local tem tudo para se afirmar, em breve, como uma das mais interessantes dos próximos anos”, escreveu Eduardo Valente na carta do júri da Mostra Sururu de 2017, antevendo uma ascensão.
O futuro alagoano nas telas
Se antes Alagoas se comportava como convidado ocasionalmente destacado em eventos de cinema, essa lógica pode estar mudando para os próximos anos. A vanguarda de Cavalo vem na esteira de diversos êxitos de curtas-metragens alagoanos premiados em ocasiões importantes. No mesmo Festival de Tiradentes em que o longa estreou, estiveram outros três filmes alagoanos. Logo depois, Como Ficamos da Mesma Altura (2020), de Laís Araújo, foi selecionado para o prestigiado Festival de Roterdã – atualmente ele integra o VI Cine Jardim. Trincheira (2020), de Paulo Silver, em Gramado; e A Barca (2020), de Nilton Resende, no Festival de Cinema de Havana, ajudam a consolidar essa força coletiva que vem se desenhando. Antes, um dos grandes destaques do Cine Ceará 2019 foi Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur, cineasta que venceu prêmios de desenvolvimento de roteiro para tirar do papel seu primeiro longa-metragem, Não Estamos Sonhando. Há mais de 100 filmes em produção no estado, entre curtas, longas e telefilmes. Além disso, um edital com inscrições abertas prevê mais de R$ 8 milhões de investimentos no audiovisual e produtores utilizam instrumentos como a Lei Aldir Blanc para viabilizar projetos mesmo com a política federal de desmonte que atrapalha a cadeia produtiva do cinema brasileiro. Há muito a ser colhido no estado de Alagoas.
Também é necessário destacar talentos emergentes entre atores e atrizes alagoanos que estão despontando. Aos 23 anos, Luciano Pedro Jr. tem papel de destaque no longa-metragem pernambucano Carro Rei (2021), um dos concorrentes ao Kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado 2021. No filme de Renata Pinheiro também sobressai uma conterrânea de Luciano, a atriz Ane Oliva. Ela andou o mundo em 2020 com A Barca, de Nilton Resende. A propósito, este curta baseado nos escritos de Lygia Fagundes Telles foi um dos exemplares de maior circulação global do cinema alagoano, ajudando a tornar universal a produção local. Ane pode ser vista recentemente também em Currais (2020), filme exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E, para finalizar, duas outras atrizes de A Barca que merecem destaque nesse recorte rápido: a veterana Aline Marta, que chamou atenção ao contracenar com Antonio Pitanga em Casa de Antiguidades (2020), e a jovem Wanderlândia Melo, uma das promessas das artes cênicas nordestinas. Pelo jeito, talentos regionais não vão faltar também diante das câmeras.
Pensando nas diversas formas de disseminação e consumo, não é possível se esquecer das plataformas de streaming. E Alagoas conta com uma para escoar sua produção. Batizada de Alagoar (www.alagoar.com.br), a iniciativa concentra quase 300 exemplares online e gratuitamente. O portal reúne especialmente curtas-metragens, com destaque para documentários produzidos nos últimos cinco anos, sinal do crescimento significativo da cena local. Além de projetos experimentais, animações e videoartes, a rica coleção conta também com ficções que vão do drama à comédia, passando por filmes de gênero populares como o terror. Conforme consta no descritivo do site, “O projeto nasceu como “Audiovisual Alagoas”, em 2008, a partir do trabalho de pesquisa e catalogação desenvolvido por Bruna Queiroz e Larissa Lisboa, que teve como base o livro Panorama do Cinema Alagoano (1983), de Elinaldo Barros (1946-2021). Em março de 2015, a iniciativa ingressou na sua fase digital, com o lançamento deste site”. O streaming tem ainda um podcast próprio: o Fuxico de Cinema. Ao que tudo indica, Alagoas tem tudo para ser um dos grandes polos de produção de cinema do Brasil. E a ascensão é prova de que com incentivos temos condições de ampliar o Brasil de cinema para além do eixo Rio-SP.
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