Crítica


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Sinopse

Jovens numa escola pública alagoana interagem num dia a dia repleto de movimento e livre expressão de suas demandas particulares.

Crítica

A resistência, em Ilhas de Calor, passa pelo afeto compartilhado entre os estudantes secundaristas de uma escola pública alagoana. Diante da atualidade parcialmente desdenhosa do conceito de educação para todos, na qual alguns setores, velada ou descaradamente, pregam a torpe elitização da circulação de conhecimento, o curta-metragem de Ulisses Arthur surge como uma lufada de esperança por valorizar carinhosamente esse lugar. Isso por meio da liberdade da linguagem que privilegia a eletricidade própria da mocidade, algo que perpassa o conjunto. No filme, professores poetas não são utopias e, portanto, figuras inalcançáveis. Estão ali, disponíveis para orientar o percurso dos alunos que têm dinâmicas de interação bastante particulares, entrecortadas por experimentações e doses significativas de doçura transbordante dos gestos e das trocas.

Ilhas de Calor mostra núcleos circunstancialmente "rivais", provoca uma reflexão bem mais pela forma como cerze esses fragmentos embebidos em atrevimento e o registo de atividades cotidianas. Fora estritamente do ambiente da sala de aula, no pátio ou nas circunvizinhanças do mesmo, sintomaticamente trajados com o uniforme da escola, os personagens ganham espaço para desvelar seus desejos – vide os olhares trocados que denotam, desbragadamente, um querer mútuo. Ademais, demonstram a infantilidade que gradativamente perde espaço às demandas da vida adulta. Uma das sequências mais bonitas do curta-metragem é a que tem vários e pequenos enfrentamentos, com vassouras substituindo espadas e as tensões sendo representadas numa chave tão lúdica quanto natural. É pungente essa narrativa demarcada por uma intensidade juvenil.

Contornando bem as restrições espaciais, uma vez que foi rodado apenas nos cenários concernentes à escola, Ilhas de Calor dá conta de projetar essa turbulência, por vezes deliciosa, noutras praticamente asfixiante (embora no filme nem tanto), do trânsito da infância à vida adulta. Em boa parte do curta é como se a câmera estivesse atenta prioritariamente às conjunções brincantes, das quais se desprendem um sem números de elementos, menos atrelados ao estabelecimento de uma trama com início, meio e fim. As liberdades vão da fratura do fluxo adotado, com a intromissão bem-vinda de um excerto mimetizando os videoclipes da música pop, à literal quebra da quarta parede com o estilhaçar da lente e, por conseguinte, o flagrante metalinguístico. Essa energia vibrante é contaminada pelo comportamento de alunos que simplesmente se permitem agir.

Não há, especialmente por parte de Ulisses Arthur, uma vontade reconhecível de afrontar o estado das coisas diretamente, erguendo panfletos. Ele o faz organicamente ao fomentar o trânsito entre figuras em pleno desabrochar. A simples contenda em torno da posse da bicicleta se desdobra noutras conjunturas que dizem respeito a essa bem-vinda jovialidade pulsante, mais física, ainda que também intelectual, com suas singularidades e vicissitudes. A geografia da escola é amplamente ocupada por esses cidadãos em formação. Meninos e meninas são orientados a partir da amizade nutrida em diferentes níveis num grupo heterogêneo. Ilhas de Calor é uma experiência de encantamento pela liberdade, este bem aparentemente consagrado sem exceções, mas, infelizmente, depauperado pelo conservadorismo ao qual nem todos (ainda bem) se adequam.

 

(Filme assistido durante a 29ª edição do Cine Ceará)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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