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Sinopse

Uno tem o dom extraordinário de se comunicar com carros. Diante de uma lei que proíbe a circulação de automóveis antigos, o que coloca em risco a empresa de táxi de seu pai, ele vai buscar orientação de seu melhor amigo: um carro que possui inteligência sem igual.

Crítica

Exibida dentro de um festival repleto de filmes mornos, uma produção como Carro Rei (2021) tem suas qualidades ampliadas. Para esta distopia kitsch sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil, a diretora Renata Pinheiro elege como símbolo central um objeto particular: o carro, item de status entre os homens de poder, representando a potência, virilidade e ação acima da reflexão. Dentro do país onde o presidente busca demonstrar força com um desfile de tanques, ou andando de motocicleta com seguidores, o ronco do motor efetua uma alusão potente ao projeto de brutalidade. Enquanto a narrativa humaniza as máquinas, capazes de falar, raciocinar, amar e liderar grupos de humanos, ela robotiza os indivíduos, zumbificados pelos discursos autoritários e aplaudindo a política da morte. Divino Amor (2019) e Bacurau (2019) deram passos fundamentais rumo à reflexão do Brasil contemporâneo, mas talvez este projeto de 2021 traduza de maneira ainda mais eficaz o bolsonarismo em seu aspecto grotesco, massificante e nazifascista. Trata-se de uma obra onde a violência ultrapassa a morte humana, preferindo sua escravidão – uma fábula a respeito de ovelhas elegendo a raposa para governá-las.

Para uma premissa fantástica, uma estética fantástica. A diretora rompe com o naturalismo, embora sua aventura mecânico-futurista possua óbvia relação com a realidade. O espectador imerge num universo onde o céu e a superfície dos automóveis são tingidos de verde profundo. O parto inverossímil do bebê Uno corresponde ao ato mágico das fábulas: surge o filho envolvido em plástico, embalado como um produto, acompanhado pelo choro que não provém do recém-nascido no colo da mãe. Conforme os automóveis desenvolvem a habilidade da fala, tendo sua linguagem traduzida por um homem de capacidade cognitiva reduzida (ou seria ampliada?), este universo vibra, literalmente: o carro empoderado faz com que a sucata do ferro velho trema de felicidade, ao passo que os mecânicos dançam robotizados e os faróis piscam sem parar. O sexo se embala em cores neon, associando-se à linhagem brasileira de obras onde o azul, rosa e verde neon representam o desejo sexual e o ingrediente queer de ruptura com a norma. A irrupção do neon permite que uma vagina pisque e um carro tenha orgasmos. Enquanto as cenas relacionadas à agricultura familiar e orgânica soam naturalistas – e menos interessantes em termos estéticos –, as sequências junto aos motores se traduzem num espetáculo de malícia e gozo. O filme opõe o mundo solidário das plantas ao submundo predatório das máquinas. O herói, sem surpresa, se transforma no sujeito escolhido para efetuar a transição perigosa entre ambas as esferas.

Infelizmente, Uno (Luciano Pedro Jr.) constitui um herói bastante fraco. Suas motivações, objetivos e sentimentos são deixados em segundo plano pela narrativa. A vontade de cursar agronomia surge de modo abrupto; a briga com o pai surte impacto nulo no garoto; o conflito do acolhimento por uma cooperativa é abandonado em seguida; o reencontro veloz com o pai soa inverossímil. Uno é o tipo de protagonista em torno do qual todas as ações acontecem, embora não exerça impacto em nenhuma delas. O estudante some no enquadramento perto de personagens mais fortes, a exemplo do Carro Rei (Tavinho Teixeira), Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), Mercedes (Jules Elting) e Amora (Clara Pinheiro) – estes sim, dotados de vigor e de princípios bem delineados. Luciano Pedro Jr. possui atuação discreta, seja pela diferença de registro em relação aos atores experientes, seja em virtude de tantas cenas de objetivo impreciso. Ao seu lado encontra-se um Matheus Nachtergaele possuído, no melhor sentido do termo, transitando entre o humano, a máquina e o monstro com evidente respeito por indivíduos com limitações intelectuais. As interações entre Zé Macaco e Mercedes fornecem os melhores momentos do filme graças ao intenso trabalho corporal dos dois. As sequências de sexo despertam as apostas mais empolgantes de linguagem cinematográfica, quando todos os setores se alinham à perfeição: o ritmo da montagem, as luzes artificiais, o trabalho de sons e ruídos.

Em paralelo, Carro Rei possui a estranha tendência a racionalizar suas metáforas. Rico em significados e sensações, o filme às vezes investe em falas professorais, articuladas demais, como se os criadores estivessem preocupados em transmitir ao espectador seus questionamentos pessoais. “Você acha que o ser humano é uma espécie natural?”, pergunta Zé Macaco, antes de palestrar a respeito da evolução dos homens primitivos através da tecnologia. “Será que estamos nos transformando em máquinas?”, questiona Uno, ao que o tio responde: “Talvez a gente já seja a máquina”. Que jovem verossímil se comunica na primeira pessoa do plural? “Você sabia que no sexo descobrimos melhor quem somos? É onde nos deparamos com nossos fantasmas”, explica a performer. “A gente não tinha esse plano de trabalhar por uma sociedade sustentável e justa?”, questiona a colega do curso de agronomia. Nestes instantes o filme se traduz de maneira redutora, a exemplo dos guias de museu que, observando uma complexa pintura abstrata, explicam: “Aqui o pintor reflete sobre o vazio da contemporaneidade”. Ora, por que a interpretação do espectador precisa ser condicionada de maneira tão rígida? Ele não poderia chegar a estas conclusões por si próprio, ou apontar novas possibilidades de leitura, alheias às intenções dos autores?

Rumo à conclusão, a narrativa amarra pontas soltas e apresenta metáforas marcantes – e exemplo da guerra literal entre as sementes e os motores, ou entre os carros e as plantas. A preciosa transformação de Zé Macaco, entre um pequeno homem assistido pelo cunhado e um líder autônomo, constitui a pérola desta jornada ambiciosa. É difícil imaginar outro ator capaz de mergulhar com tamanha facilidade neste personagem, rumo a uma conclusão fazendo referência a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Renata Pinheiro imagina o século XXI onde o corpo encontra dificuldade em gozar e, nenhum homem possui interesse amoroso ou sexual por outros homens ou mulheres – apenas os automóveis têm prazer. O carro rei também corresponde a um carro deus, um carro messias, um (falso) profeta, oferecendo soluções milagrosas aos problemas da cidade. As pregações sedutoras encontram uma representação no culto ao veículo divertido e manipulador, que fala em inglês (“Caruaru will never die!”) e efetua planos secretos com seus comparsas automóveis. A distopia se converte na ferramenta ideal para observar com o devido estranhamento nossos tempos de desumanização, quando políticos conservadores alegam que a morte de CNPJs é mais grave do que aquela de CPFs, e apostam na morte de uma parcela significativa da sociedade em nome da manutenção dos poderes de uma oligarquia.

Filme visto online no 49º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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