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Sinopse

Jovens dançarinos são instados a mergulhar em suas ancestralidades em meio a um processo criativo.

Crítica

Então os orixás criaram o homem e a mulher. Os letreiros iniciais deste filme rompem com a cosmogonia cristã para resgatar, de imediato, uma religiosidade ampla, de matriz africana, pautada pela liberdade dos corpos e das sensações. Enquanto o cristianismo cola um sem-número de tabus ao prazer humano, Cavalo vai no sentido oposto ao buscar na transcendência uma forma de contato tolerante consigo mesmo. Ao longo do filme, artistas dançam, efetuam performances, escutam música, ensaiam. As canções vão da ritmada dança para os orixás ao rap, com direito a uma canção gospel escutada por um artista homossexual ao lado da mãe religiosa. O projeto narra uma configuração social conflituosa, filtrada pelo olhar clemente e progressista das artes.

Em termos de classificação, o filme foi descrito como “experimental” dentro da Mostra de Tiradentes, embora não efetue nenhuma experimentação propriamente dita com textura de imagens, abstração das formas, telas múltiplas ou demais recursos estéticos normalmente associados às correntes vanguardistas. Talvez fosse mais apropriado chamá-lo de filme híbrido, no sentido amplo do termo: os diretores Rafhael Barbosa e Werner Salles combinam apresentações de dança com os ensaios da mesma, alternando com cenas fictícias (ou, pelo menos, encenadas) de rituais do candomblé, depoimentos dos artistas e cenas tipicamente documentais destes em suas casas. Existem diversos registros unidos pela ideia da expressão irrestrita do corpo em discursos de teor religioso, sexual, de gênero, artístico. O principal movimento deste belo projeto consiste em enxergar a natureza intrinsecamente política da arte, desconstruindo a distopia autoritária de uma arte “heroica e nacional”, utilitária e engrandecedora.

Por esta razão, Cavalo se torna essencialmente um filme de montagem, quando se costura com habilidade tantos registros de naturezas distintas. Havia um risco considerável de se cair numa obra ampla demais, sem foco, porém a montagem de João Paulo Procópio e Werner Salles encontra um ritmo fluido e uma comunicação interessante entre as cenas, sem a relação habitual de cronologia ou de causa e consequência. Privilegia-se a afinidade temática, como se fossem camadas intercambiáveis a partir do mesmo discurso sobre a política dos corpos. Este delicado entrelace entre o espontâneo e o controlado, entre a (homos)sexualidade e a religiosidade constitui um mérito considerável do projeto, que evita tanto o didatismo habitual diante de uma “cultura diferente” (o olhar da alteridade) quanto a denúncia e o grito. O filme defende a arte através de uma linguagem essencialmente artística, discutindo política por meio de suas formas, ao invés de diálogos ou narrações.

A apresentação das danças constitui um ponto alto do filme. Mais uma vez, os diretores evitam adotar um rumo único, combinando cenas belíssimas de dança contemporânea sob a chuva, em plena rua da cidade, com uma coreografia em estúdio, quando a iluminação trata de refletir o corpo da dançarina num espelho d’água. A água e os ventos reúnem estes artistas em suas coreografias ora brutais, ora delicadas, a partir de corpos nus ou seminus em movimento. Há tanto fetiche no senso comum quanto à nudez frontal de mulheres que a apresentação de Cavalo demonstra a potencial da nudez enquanto veículo de expressão, de emoção, não dialogando com os fetiches masculinos. É certo que se expõe mais o corpo feminino do que o masculino – ainda se evita a imagem de um pênis enquanto se permite a imagem do púbis feminino -, porém o projeto desconstrói a corporalidade enquanto espaço de tabu. Os corpos dançantes e performáticos (inclusive em rituais religiosos) jamais são julgados por sua moral. Estes artistas ocupam as ruas, assim como ocupam os palcos.

Trata-se de uma expansão, por meio da arte, da representatividade negra, LGBT e de religiões africanas. A comparação constante entre os corpos negros e os corpos de cavalos provoca bastante receio – é sempre delicado comparar indivíduos negros a animais de carga -, porém percebe-se que a ligação oferecida pelo filme se dá pelo papel de ambos enquanto forças da natureza, enquanto corpos imponentes movendo-se instintivamente. O cavalo se torna menos uma referência literal e conotada historicamente do que uma metáfora, um ponto de partida a partir do qual se criam coreografias e se dialoga sobre a potência do natural. Cavalo consegue unir a apreensão do real, a representação do mundo e a criação poética num mesmo registro, etéreo sem ser abstrato demais, conferindo protagonismo a corpos, vozes e identidades marginalizadas dentro de um contexto de pura beleza estética.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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